Folha de São Paulo, Saúde, domingo, 24 de outubro de
2010
ENTREVISTA /CARL ELLIOT
"Indústria farmacêutica tem controle total sobre pesquisas"
Interesses de laboratórios comandam quase tudo
na saúde, afirma Carl Elliot, professor de bioética na Universidade de Minnesota
e autor de livro sobre o lado negro da medicina
Caleb Parker
CLÁUDIA COLLUCCI, DE SÃO PAULO
Em 1989, Len iniciou residência médica em
psiquiatria, após terminar a faculdade em Harvard. Trazia no currículo
excelentes notas. Mas Len era uma farsa. Nunca esteve em Harvard. Era
funcionário de um laboratório. A história, real, parece conto infantil perto de
outras que surgem nas 224 páginas de "White Coat, Black Hat -Adventures on the
Dark Side of Medicine" (jaleco branco, chapéu preto: aventuras no lado negro da
medicina), do médico Carl Elliot, professor de bioética e filosofia na
Universidade de Minnesota. Uso de "cobaias humanas" em estudos científicos
obscuros, médicos sendo "porta-vozes" da indústria farmacêutica em troca de
altas somas, doutores influentes que assinam artigos de escritores-fantasmas. A
lista de falcatruas parece não ter fim. Elliot, 49, um dos principais nomes da
bioética nos EUA, não promete imparcialidade na sua obra. "Meu interesse é no
que tem de errado. Construímos um sistema médico em que o ato de enganar não é
apenas tolerado, mas recompensado", afirmou à Folha o
autor de outros seis livros na área. Nos últimos cinco anos, uma série de obras
vem revelando que a indústria farmacêutica escapou a todo controle. Tem
influência quase ilimitada sobre a educação, a pesquisa e os médicos. Pergunto a
Elliot se os laboratórios não têm nada de bom, se são tão sombrios assim como
ele pinta no livro. Ele não titubeia: "Sombrios? Deixei de fora os trechos mais
desmoralizantes." A seguir, trechos da entrevista dada à Folha,
por e-mail.
***
Folha – A imagem heroica da indústria, associada a drogas como a penicilina e
insulina, parece ter ruído após tanto escândalos e poucas descobertas. A glória
acabou?
Carl Elliot –
A penicilina não foi desenvolvida por uma indústria. Alexander Fleming a
desenvolveu no St. Mary s Hospital, em Londres. E o trabalho crucial para a
insulina foi feito na Universidade de Toronto. O problema hoje é que temos um
sistema de desenvolvimento de drogas orientado para o mercado e não para as
coisas que as pessoas doentes precisam.
Você relata várias monstruosidades cometidas em ensaios clínicos. Isso ainda
ocorre com frequência?
A
maioria dos medicamentos ainda é testada em pessoas pobres, especialmente nos
estágios iniciais. Muitas pessoas não iriam se voluntariar para tomar remédios
não testados, durante três semanas, sem receber pagamento. Esses voluntários são
pessoas que precisam desesperadamente de dinheiro.
Qual o futuro do relacionamento entre a indústria farmacêutica e os médicos?
A
solução que vem sendo instituída aqui, nos EUA, é a transparência. Médicos podem
aceitar todo dinheiro que quiserem, desde que não escondam isso. Mas meu palpite
é que isso vai normalizar a prática. Não parece haver vergonha em tirar dinheiro
do setor. Na verdade, ser escolhido para ser "líder" entre os médicos, pago pelo
setor, é visto como uma honra.
Então, transparência também não resolve?
Transparência importa, mas não é a solução. Propina é propina, mesmo se é
recebida a céu aberto. A solução é eliminar os pagamentos, tal como fizemos com
os juízes, jornalistas e policiais.
Médicos dizem ser impossível fazer estudos ou congressos sem a indústria.
Verdade?
Não
é verdade. Eventos médicos podem ser feitos sem dinheiro da indústria. Ensaios
clínicos já são mais complicados. O problema é que a indústria tem controle
total sobre as pesquisas. Ela enterra os resultados negativos a fim de tornar as
drogas melhores do que são. Isso não é ciência, é marketing.
É
possível que médicos aceitem brindes da indústria e continuem independentes?
Médicos nunca pensam que são influenciados por dinheiro ou presentes. Mas temos
20 anos de dados mostrando que eles são, sim.
A
única solução seria cortar todas as relações entre médicos e laboratórios?
Há
colaborações aceitáveis. Mas se um médico é pago só para ler um conjunto de
informações da indústria ou permitir que seu nome seja adicionado a um artigo
escrito por fantasmas, esse tipo de pagamento tem que ser eliminado. Conversei
com um representante de laboratório que construiu uma piscina para um médico só
para levá-lo a prescrever mais receitas. Como alguém justifica isso?
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