Época Negócios, https://epocanegocios.globo.com/Dinheiro/noticia/2019/04/inferno-em-casa-o-pesadelo-de-pais-e-filhos-obrigados-conviver-sob-mesmo-teto-por-falta-de-dinheiro.html, 10/04/2019

Inferno em casa: o pesadelo de pais e filhos obrigados a conviver sob mesmo teto por falta de dinheiro

Tendência é verificada não só no Brasil, mas também nos EUA e em vários países europeus, todos abalados pela crise econômica de 2008

·        BBC NEWS

É cada vez mais comum ver filhos adultos morando na casa dos pais, mesmo depois de começarem a trabalhar, por causa da incompatibilidade entre os salários e o valor dos aluguéis.

A tendência é verificada não só no Brasil mas também nos Estados Unidos, em países latino-americanos e em vários países europeus, todos abalados pela crise econômica de 2008 que reduziu drasticamente as oportunidades de emprego e reduziu os salários médios.

A britânica Elliott-Nicholls e seu filho, Morgan Elliott, de 23 anos, concordam que a convivência em fase adulta pode se transformar em pesadelo.

Leia abaixo o relato de Sue, com comentários de Morgan.

É um dia excepcionalmente quente de primavera. Chego em casa de bicicleta após um dia tranquilo no trabalho.

Tenho aproveitado as noites mais claras.

Chego em casa cedo – são apenas quatro horas da tarde. Posso até tomar um chazinho no quintal.

E, de repente, vem o golpe.

Abro a porta da frente e sou recebida por um bafo de ar quente, parece que estou no Deserto do Saara.

Ele deixou o maldito aquecedor ligado!

Conto a uma vizinha. Ela tira uma tampa de ralo de banheira do bolso e me mostra.

“Eu levo comigo para que ele não passe a tarde toda no banho, enquanto eu estou trabalhando para manter um teto sobre nossas cabeças”, diz ela.

Vocês pode estar pensando que nós duas estamos vivendo relações amorosas problemáticas e, em certo sentido, estamos – mas com nossos filhos!

Nossos filhos estão na faixa dos 20 anos e são obrigados a morar com a gente porque seus salários não cobrem os custos dos aluguéis em Londres (e eu estou me referindo apenas aos aluguéis, sem as contas).

De acordo com o instituto Civitas, 49% dos jovens de 23 anos (no Reino Unido) agora vivem com os pais. Em 1998, eram 37%.

Esses são nossos filhos. Aqueles que não são privilegiados o suficiente para desfrutar dos serviços de “caixa eletrônico do papai e da mamãe”, mas são privilegiados o suficiente para desfrutar (ou não) da moradia dos pais, com um aluguel altamente subsidiado.

Preciso dizer que meu filho Morgan não é preguiçoso. Ele trabalha duro, é motivado a ganhar dinheiro e a progredir na vida.

Eu também sinto por ele. Depois de três anos morando em Manchester, quando cursava a universidade, aproveitando a independência, deixando pratos sujos na pia e toalhas no chão, ter que voltar a viver em um pequeno quarto em uma casa onde todas as suas conversas – e respiração – podem ser ouvidas… isso deve ser desesperador.

Mas como eu faço para deixar de ser uma mãe irritante e deixar meu filho respirar?

Morgan Elliott comenta: Este casaco que custou basicamente todo meu empréstimo estudantil não é quente o suficiente para as condições árticas aqui de casa. Acho que nem um urso polar seria capaz de sobreviver às temperaturas que minha mãe nos faz suportar.

É irônico que ela gaste literalmente dez libras por dia tomando café, mas não pode se dar ao luxo de aquecer a casa para o filho.

Há copos na máquina de lavar louça cheios de água suja, porque foram colocados da maneira errada. Ele tem um diploma universitário, como pode não saber colocar um copo na máquina de lavar louça?

O copo não está nem meio cheio nem meio vazio; o copo está totalmente cheio de água suja da máquina.

O chouriço especial que comprei para um jantar de família desapareceu. Talvez eu possa usar o peito de frango em vez disso? Não, aparentemente não. Ou as costeletas de cordeiro? Tampouco. Acabou tudo.

Morgan também colabora em algumas tarefas domésticas (Foto: BBC)

“O que?”, diz ele. “Você não disse que não era para comer.”

Nós regredimos. Ele virou um adolescente petulante, e eu uma megera estridente.

Morgan comenta: Como sou seu filho, faz sentido que minha mãe queira me alimentar. No entanto, não parece ser o caso.

Às vezes, vejo um pouco de frango na geladeira e posso decidir comer. O telefone da minha mãe está desligado, mas tenho certeza que como é para alimentar seu filho não será um grande problema.

Mas isso sempre acaba num grande arrependimento. E uma pequena decisão minha se transforma em uma situação pela qual eu posso ser expulso de casa. E isso não é exagero. “Você é um homem de 23 anos!”, ela grita. Exatamente! E um homem de 23 anos precisa comer!

Vamos voltar à calefação. Já mencionei o aquecimento?

Se está frio quando estou trabalhando de casa, ligo o aquecedor apenas em um cômodo. Imaginem minha raiva quando vejo ele passeando pela casa de cueca e camiseta com a calefação a todo vapor?

O que fazer neste caso?

Opção 1. Colocar de castigo. Não, ele tem 23 anos, não é uma opção real.

Opção 2. Pedir a ele para pagar mais aluguel e me arriscar a entrar em uma discussão sobre dinheiro.

Opção 3. Acionar o modo zen e pagar o adicional da conta de calefação, ignorando a voz que repete o quanto você é otária.

Opção 4. Pedir a ele para sair de casa, já que não consegue colaborar para manter o valor das contas baixo. Parece um pouco drástico…

É a despesa escondida que Morgan não vê. Custa dinheiro usar um ciclo inteiro da máquina de lavar roupa para lavar um par de cadarços.

Ele liga o forno no máximo para fazer uma salsicha – e depois fica ligado pelo resto do dia, isso custa dinheiro.

“Eu até considerei desligar o gás quando estamos fora de casa”, brinca meu marido. Eu dou risada, faço uma pausa, olho para ele de lado e pergunto: “Podemos fazer isso?”

Ele conta ao nosso filho como, na sua época, era esperado que ele contribuísse com a maior parte do seu salário para as despesas da casa, colocando o dinheiro dentro de um bule de chá.

“Mas isso foi 350 anos atrás, e os tempos eram mais difíceis”, eu acrescento, minando mais uma vez a autoridade dele, assim como fazia quando os meninos eram pequenos. A família toda está regredindo.

Se fôssemos colegas dividindo apartamento, um de nós já estaria morto.

Mas então, como acontece nas melhores famílias, momentos depois estamos todos juntos rindo na cozinha, esquecemos tudo em um instante.

Até a próxima vez.

Morgan comenta: irritantemente para mim, tenho muitos amigos ricos, e a ideia de que minha mãe quer tirar meu dinheiro, em vez de dar dinheiro para me ajudar a pagar um aluguel, parece absurda. Não é um problema em si, e entendo perfeitamente que as contas precisam ser pagas, mas parece que meu aluguel está aumentando em uma base quase mensal.

Minha mãe procura qualquer desculpa para aumentar – quanto mais eu ganho, mais ela quer que eu pague!

Parece um daqueles golpes de internet, em que você assina o contrato e, nas letras pequenas, diz que *o aluguel vai aumentar em 50 libras por mês*. Um contrato de seis meses pelo menos me daria uma ideia de como planejar o orçamento para os próximos meses. E sim, isso pode incluir a compra de tênis novos.

Morgan diz que se sente julgado por nós e até certo ponto isso é verdade.

Mas também me sinto julgada por ele. Quando estamos esparramados no sofá em uma sexta-feira à noite com uma garrafa de cerveja e um saco de batatas fritas, ou os meninos estão se preparando para sair na mesma hora em que estamos pensando em ir para cama, me sinto um fracasso social.

Quando saímos ou convidamos amigos para ir à nossa casa, conto orgulhosamente aos meus filhos – e percebo que estou buscando aprovação.

“Vejam, eu tenho amigos, tenho uma vida social, também sou legal.”

Morgan comenta: Falando sobre julgar, imagine este cenário não-hipotético: Acabei de chegar em casa do trabalho, completamente exausto – e sinto vontade de fumr um baseado. No verão, eu daria uma volta no parque para fazer isso, mas agora o jardim parece mais apropriado.

Porém… se eu for pego, minha mãe vai achar que eu sou um viciado em crack, a julgar pela comoção exagerada que ela causa quando aumento a calefação, ela não vai ter dinheiro para me mandar para um centro de reabilitação este ano.

Além disso, a janela do meu irmão está aberta e se o vento soprar a fumaça para o quarto dele, meu pai definitivamente vai sentir o cheiro e mandar eu parar na hora. Não que ele fosse diferente na minha idade.

Sim, é verdade, eu julgo… Reparo no tênis novo.

“Por que você está comprando um tênis de 150 libras quando poderia economizar para dar entrada em um apartamento?”, menciono como quem não quer nada.

Assim que as palavras saem da minha boca, eu me arrependo. Por que ele não deveria? Quando eu era mais jovem, na verdade, quando ele era bebê, eu comprava roupas caras porque não tinha esperança naquela época de comprar uma casa. Então, por que não?

“Se eu estou pagando aluguel, deveria poder pelo menos levar garotas para casa”, argumenta ele.

Bem, garotas sim, como amigas. Afinal, essa ainda é uma casa de família (não que seu irmão adolescente se importasse – mas daria a ele uma desculpa para fazer o mesmo).

Vivendo em uma casa só com homens, adoro quando aparece uma menina – quase imploro para elas não irem embora quando as vejo saindo pela porta.

Morgan (à esquerda) e seu irmão mais novo, Spencer, conversando na cozinh (Foto: BBC)

Mas esta não é uma casa de solteiros. Então, se elas vêm até aqui, eu gostaria de vê-las e conversar com elas.

Me sinto agora uma puritana. Uma neurótica pudica rabugenta.

Será que outras culturas sabem lidar melhor com isso? Será que há regras que facilitem a convivência entre gerações?

Morgan comenta: São três da manhã em Shoreditch (bairro boêmio de Londres) e sinto que posso ter encontrado minha futura esposa. Damos umas 10 voltas na área tentando encontrar um bar que ainda esteja aberto, mas parece que estamos sem sorte… Estou agindo como se realmente não tivesse para onde levá-la.

Claro que tenho, mas não tenho certeza de que ela se sentiria confortável ao conhecer minha família tão cedo. Eles vão achar que ela é minha namorada e começar a fazer perguntas. Ou pior, e se o banheiro estiver bagunçado? Estou realmente começando a questionar se não valeria a pena alugar algo barato.

Quando eu era mais novo, era muito mais fácil levar garotas para casa – mas agora estou levando mulheres adultas, prontas para desafiar o domínio da leoa.

“Assim que ele sair de casa, você vai sentir falta dele”, diz uma amiga.

“Depois eles voltam e você vai ter que se acostumar, e logo vão embora de novo, é o chamado efeito bumerangue.”

Um estudo realizado no ano passado pela universidade London School of Economics (LSE), em Londres, concluiu que a geração bumerangue causa um declínio significativo na saúde mental dos pais.

Mas eu sei que vou sentir falta quando ele sair de casa. Meus filhos agora têm 17 e 23 anos e quando estamos conversando na cozinha, ou escuto eles rindo na sala de estar, fico emocionada com o quão fantásticos eles são.

Eles são uma excelente companhia, são engraçados, interessantes, atenciosos e têm tiradas ótimas.

Um dia eles vão sair casa. “Mas tudo bem”, digo a mim mesma. “Eles vão voltar em breve.”

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