TROPICO – IDÉIAS
DE NORTE E SUL  –

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– 14 de março de 2006

Muita arte e alguns vinténs

Livro do economista holandês Hans Abbing procura explicar
por que os artistas são pobres


Por Carlos Adriano

Nascido em 1946, em Utrecht (Holanda), Hans Abbing é artista
visual, economista e sociólogo. Essa confluência de especialidades será
fundamental para sua principal contribuição às reflexões interdisciplinares. Em
1970 ele obteve o título de mestre em economia na Universidade de Groningen, e
entre 1971 e 1976 trabalhou como pesquisador no Instituto de Pesquisa da
Faculdade de Economia dessa universidade.

A partir de 1983, Abbing passou a exibir obras como desenhista
e fotógrafo, cujos temas são o corpo humano e o retrato. Expôs em galerias
européias (Berlim, Montpellier, Londres, Amsterdã) e recebeu por duas vezes as
bolsas da Fundação Holandesa para as Artes Visuais (FBKV), por seu trabalho em
desenho (1995) e em fotografia (2004).

Em 2002, no mesmo ano que recebeu o título de doutor na
Universidade Erasmus de Roterdã, ele publicou “Por que os artistas são pobres?
A economia excepcional das artes” (“Why are artists poor? The
exceptional economy of the arts”, Amsterdam University Press, Amsterdã).

Às vezes ressentindo-se de um inevitável eurocentrismo e
correndo o risco de escorregar no fatalismo liberal, o livro aposta em
indagações curiosas, foge do estereótipo idealista do assistencialismo e chega a
conclusões “polêmicas”, como o argumento de que subsídios às artes mais
atrapalham a dinâmica da sociedade de artistas do que ajudam sua produção.

Nesta entrevista concedida por e-mail, Abbing comenta a
contingência de pobreza entre artistas, a mudança trazida pelo fim do Estado de
Bem-estar Social na Europa, os mitos permanentes do artista “marginal” em nichos
do mercado mundializado e algumas das reflexões que aprendeu com a produção de
seu livro.

Aqui, “artista” refere-se às artes ditas clássicas (pintura,
escultura) e contemporâneas (instalação, performance) do “tradicional” sistema
artístico, estranho ao mercado dos meios de comunicação de massa. Advertência
necessária quando se fala em economia, pois estes não são os artistas da
indústria do entretenimento (música pop, televisão, cinema) que tem como
correlato redundante a celebridade midiática e as cifras milionárias do showbiz.

Abbing reparte seu tempo entre a criação e a academia. Desde
2005, é professor de sociologia da arte na Universidade de Amsterdã, na
Faculdade de Ciências Sociais e Comportamentais e na Faculdade de Humanidades.

*

A maioria dos artistas é pobre; entretanto, um contingente
imenso de artistas aparece em cena a cada ano, mesmo reconhecendo a dura luta
para construir uma carreira. Por quê?

Hans Abbing: Jovens que desejam se tornar artistas
tendem a ser muito ansiosos e assim tendem a ignorar a informação disponível
sobre as poucas chances de se alcançar o sucesso nas artes. Não é diferente do
esporte. No entanto, no esporte a informação é mais clara e após algum tempo é
mais difícil de ignorar. As exigências do esporte, incluindo sua própria
realização, são mais fáceis de se medir, e logo a pessoa decide se juntar aos
muitos amadores em lugar dos profissionais. Além do mais, as artes ainda têm uma
aura romântica, que as torna mesmo mais atraentes.

Por que alguns desistem e outros continuam?

Abbing: É difícil dizer por que um artista desiste mais
cedo do que um outro, enquanto ambos alcançam pouco ou nenhum sucesso
igualmente. Suponho que devido à educação, alguns sejam mais teimosos e outros
mais oportunistas, ou apenas mais sábios. Alguns começam a formar famílias, e
enquanto um parceiro está disposto a apoiar o artista, outro parceiro exige que
o artista traga dinheiro para casa também.

Como funciona essa fascinação permanente da arte e qual é o
papel desta fascinação num sistema de compensações, que faz um indivíduo
sobreviver no seu sustento de modo a realizar o sonho?

Abbing: A disposição dos artistas em trabalhar por
remunerações baixas é compensada, ao menos em alguma medida, por outras formas
de renda. Fazer arte talvez dê mais prazer do que fazer outro trabalho, e em
média dá ao artista algum status especial. Freqüentemente, mesmo o artista
fracassado ainda pode derivar algum “status” da condição de ser artista.

Ao mesmo tempo há artistas que são muito ricos. Como
explicar essa dinâmica geral (o artista pobre, o artista rico, o contínuo
movimento do sistema)? Esses elementos estão interconectados?

Abbing: Existe este mecanismo de que pequenas
diferenças presumidas na qualidade podem causar imensas diferenças de
rendimento. As pessoas investem nas estrelas. Muitas teorias podem explicar
isso. Assim como empresas contratam um advogado que é um pouco melhor do que
outros, as pessoas também vão buscar vencedores nas artes -tanto em âmbito local
como mundial. Nas artes, mais do que em outras áreas, os muitos perdedores
também aumentam a estima e a renda dos vencedores.

Transformações no sistema econômico podem interferir na
economia das artes. Como o fim do Estado de Bem-estar Social na Europa
“contribuiu” para a economia das artes?

Abbing: O Estado do Bem-estar Social na Europa tornou
relativamente fácil a entrada no meio das artes e a permanência no ramo das
artes. Desde que o Estado de Bem-estar perdeu a força, isso ficou mais difícil,
mas não tanto. Em vez de artistas vivendo do seguro social em muitos países
europeus, eles agora podem usar novos esquemas especialmente criados e
destinados para aqueles que não podem viver das artes. Isso é mesmo mais
atraente para os artistas interessados, porque, dentro de uma sociedade em
transformação, receber benefícios sociais tornou-se menos aceitável moralmente
para os próprios artistas.

Como a nova divisão do trabalho numa sociedade midiática
altera o papel e a ideologia do artista? Não há mais espaço para o artista como
visionário? Seria ele apenas mais uma engrenagem na indústria do entretenimento?

Abbing: Os papéis dos artistas estão sempre em
movimento e certamente o estão numa sociedade que se torna mais e mais
midiatizada. É também verdade que o apoio aos artistas visionários tornou-se
levemente menos forte do que há 20 anos atrás. Além do mais, um pequeno grupo de
artistas estabelecidos pode agora trabalhar para a indústria de entretenimento
sem ser muito condenado por isso pelo mundo das artes. No entanto, tenho a
impressão de que, como a Ordem Romântica ainda é muito presente em nossa
sociedade, há ainda muito apoio e lugar para o tipo de artista anterior, e
também haverá por um longo tempo.

Qual é o papel daquele mito romântico do artista iluminado,
“le maudit”, “o marginal”, na corrente economia?

Abbing: Pode-se perguntar se, tanto na arte apoiada por
governos como na arte financiada comercialmente, ainda há lugar para a arte
subversiva. Observando as novas artes, como música pop, rap, quadrinhos, dança
break etc., percebo que há um pouco mais de espaço para a arte subversiva em
nichos de mercado do que em áreas financiadas pelo governo. Entretanto, o
principal espaço para a arte subversiva é e sempre foi nas áreas voluntárias e
não remuneradas da produção de arte, seja nas ruas ou num quarto de estudante,
áreas que sempre precedem e prescindem do envolvimento do mercado e do governo.

Este mito do artista underground (e consequentemente)
antiburguês e pobre chegou a um fim?

Abbing: Não acho absolutamente que esses mitos tenham
chegado a um fim. Eles podem estar menos proeminentemente presentes no
comportamento de importantes artistas e críticos -e não em seus pensamentos
ocultos-, mas estão geralmente muito presentes em nossa sociedade. A principal
diferença em relação a centenas de anos atrás é que naquele tempo somente uma
minoria de artistas se via como boêmios, enquanto que agora quase qualquer
artista se identifica com a ideologia boêmia. Nesse sentido, todos são
antiburgueses, isto é, contra a velha burguesia.

A arte hoje é moeda corrente na economia globalizada
(museus, galerias, leilões, centros de cultura), numa cadeia planetária de
mercadorias. Haveria um modo para o artista entrar na indústria comercial sem o
risco de perder sua identidade pessoal ou “marca registrada”?

Abbing: Como já deixei implícito, especialmente nos
níveis menores e nos nichos do mercado globalizado há ainda bastante espaço onde
o artista pode manter e desenvolver sua identidade pessoal e aquilo que quer
comunicar. Isso foi, é e sempre será constituído por uma minoria de artistas.
Não há nada de errado nisso. Afinal, a produção de arte foi, é e sempre será a
criação de produtos de entretenimento acima de tudo.

Numa das parábolas introdutórias que abrem os capítulos de
seu livro, você se refere a uma experiência ligada ao Brasil sobre a disposição
de um grupo de artistas em manter sua condição “marginal”. Como foi isso?

Abbing: Escrevi parte do livro no Recife e conversei
com muitos dançarinos brasileiros “à margem” do circuito oficial, mas isso não
no Recife, e sim em Amsterdã. Nos anos 90 havia muitos dançarinos brasileiros
tentando a sorte na Holanda, que era internacionalmente conhecida pelos
generosos subsídios governamentais, dos quais estrangeiros também podiam
desfrutar.

Durante um período de dez anos, pelo menos 30 jovens
dançarinos brasileiros trabalharam para mim como modelos, de modo a sobreviverem
na Holanda. Acho que ao final somente um deles conseguiu obter êxito neste país
-isto é, 3%. Essa percentagem poderia ou não ter sido mais alta se eles tivessem
ficado no Brasil; provavelmente seria um pouco mais alta. De fato, se é que
estou certo, artistas tendem a ver horizontes mais promissores do outro lado da
colina.

Que comparações você faz entre as situações do Brasil e da
Europa? Quais são, se existem, as diferenças para um artista pobre viver num
país pobre da América do Sul e um artista pobre viver num país rico da Europa?

Abbing: Eu conversava muito com esses jovens
dançarinos. A impressão que tive então foi de que era ligeiramente mais fácil
para um dançarino pobre viver num país relativamente pobre como o Brasil e
ganhar sua vida como dançarino (mas não em “novas” áreas da dança). Num país
relativamente rico como a Holanda, seria o oposto.

Entretanto, porque aqui o número de dançarinos dispostos a
enfrentar o processo ultrapassa bem mais a demanda, parece-me que na Holanda é
mais duro para dançarinos e outros artistas encontrarem trabalho remunerado.
Aqui, porém, não achar trabalho suficiente e ganhar a vida com um segundo
emprego é provavelmente mais agradável ou menos desagradável do que no Brasil.

Quais foram as conclusões mais intrigantes e surpreendentes
que você descobriu durante a feitura do livro?

Abbing: A partir de minha própria prática, trabalhando
como artista e tendo um segundo emprego na universidade, descobri que a
preferência de trabalho não é apenas um conceito teórico, mas é algo que
realmente se aplica a mim e a muitos de meus colegas. Por mais estranho que
pareça, levei um longo tempo até perceber isto.

Quando, há 20 anos atrás, pude trocar um segundo emprego ruim
e não tão bem pago por um pequeno emprego na universidade, usei o dinheiro extra
não para comprar um carro ou algo similar, mas para aumentar as horas em que
poderia trabalhar como artista. Por escolha própria, passei a trabalhar na
universidade menos horas do que trabalhava antes naquele emprego de remuneração
menor. Nunca tinha olhado para mim mesmo desse jeito.

Como artista, sempre fui a favor de subsídios governamentais
para as artes. Assim, foi um pouco chocante descobrir que os subsídios às artes
podem não ser de interesse dos artistas, porque, com os subsídios, as artes
ficam ainda mais atraentes, e assim o número de artistas aumenta, o que torna
mais difícil a tarefa de ganhar a vida como artista.

Aos poucos, mas isto não foi com o livro, também descobri que
os artistas pobres não são tão pobres afinal. Na média, eles vêm de famílias
prósperas e assim podem se permitir escolher uma profissão relativamente
arriscada. Também percebi que as pessoas que abandonam as artes costumam
encontrar outros empregos interessantes relacionados às artes.

Você tenta separar sua atuação em dois campos aparentemente
tão diferentes como arte e economia?

Abbing: Sim, tento mantê-las separadas tanto quanto
possível. Tendo mesmo a separá-las de modo bastante drástico durante um período
de tempo, fazendo arte sem interrupções por alguns meses e daí então ciência por
alguns outros meses. Acho que originalmente fiz isso para combinar com minha
personalidade meio esquizofrênica; uma personalidade revirada para cima e para
baixo, ou, de qualquer modo, inquieta. E ainda funciona bem.

A produção deste livro afetou sua produção como artista?

Abbing: Meu trabalho com as artes influencia meu trabalho
acadêmico, mas pelo que posso observar não há influência substancial na outra
direção. Mais ainda, gosto de manter ambas atividades separadas.

Você tem idéia de desenvolver algum outro projeto com esse
assunto de arte e economia?

Abbing: Não, não haverá um projeto artístico meu sobre
o tema do livro. Numa certa época até que pensei nisso, mas achei o projeto
muito conceitual. Não sou bom em arte conceitual.


link-se-


Hans Abbing – www.hansabbing.nl


Carlos Adriano
É
cineasta e doutorando em estética do audiovisual na USP. Realizou, entre outros,
“Remanescências” (coleção The New York Public Library), “A Voz e O Vazio: A Vez
de Vassourinha” (melhor curta documentário Chicago Film Festival), “Militância”
e “um Caffé com o Miécio” (exibidos no MoMA de Nova York). O Festival de Locarno
apresentou em 2003 uma mostra de todos os seus filmes.


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