Folha de São Paulo, São Paulo, domingo,
13 de janeiro de 2008

+ Livros

Profissão:
PIANISTA

Mulheres pararam de tentar
impressionar a sociedade aprendendo piano e ofício passou a ser cada vez mais
masculino, diz pesquisadora da UnB

DA REDAÇÃO

A sala das casas comuns não tem mais piano. A moça de família está
liberta. Como conseqüência, a profissão de pianista se masculinizou.

Eis o paradoxo: surgiram relativamente menos mulheres de destaque como
concertistas do piano desde o feminismo do século 20 do que na época em que ser
uma pianista profissional requeria rebeldia.

Esse é o tema de "As Pianistas dos Anos 1920 e a Geração
"Jet-Lag ", de Jaci Toffano (ed. UnB, 174 págs., R$ 25).

De 1913 a 1929, dos 634 alunos diplomados no curso de piano do
Conservatório Dramático e Musical de São Paulo 617 eram mulheres -97%-, de
acordo com a pesquisa da autora. Foi uma época em que tocar piano era uma
prenda doméstica como cozinhar ou costurar -tempo de ascensão e glória de
Antonietta Rudge (1885-1974), Guiomar Novaes (1896-1979) e Magdalena
"Magda" Tagliaferro (1893-1991).

"Elas teimaram, tiveram de romper barreiras. Cada uma trilhou um
caminho muito difícil. Tiveram de abrir mão de papéis femininos. Havia a
domesticidade, a aproximação forte com o piano, mas quando chegava o limite
entre o diletantismo, a prenda doméstica, e o profissionalismo, havia uma
barreira -que poucas conseguiram transpor", declara Toffano, professora do
departamento de música da Universidade de Brasília, em entrevista à Folha.

Passada a luta feminista e derrotado pela prática o preconceito que ditava
que mulher não deve trabalhar, persiste a alta proporção de mulheres nos consevatórios
-em torno de 70% no mesmo conservatório paulista nos anos 1990, segundo a
pesquisadora.

"Não sei se esse desequilíbrio é tão acentuado", responde
Ricardo Rossetto Mielli, coordenador do conservatório. "Quando estudei, na
década de 90, havia, sim, mais meninas do que rapazes. Foi uma coisa cultural
da família paulistana a filha estudar música, mas hoje é páreo a páreo. E o
Brasil sempre teve pianistas homens."

Competição

Mais do que um símbolo de igualdade, esse equilíbrio quantitativo em torno
do instrumento pode ser um símbolo machista. Para Toffano, no passado o piano
era visto como uma fase intermediária da carreira; a composição e a regência
seriam as metas. Com a valorização do intérprete e a competitividade no
mercado, os homens teriam tomado o lugar das mulheres até no piano.

O subtítulo do livro é "O Paradoxo Feminista": "Tivemos uma
Chiquinha Gonzaga [1847-1935] para romper barreiras, ela transgrediu, tocou no
espaço público, foi compositora -o caminho já foi trilhado. Hoje, as mulheres têm
tudo para serem profissionais, para estarem "pari passu" com o homem,
mas não estão no topo da carreira. Isso é um paradoxo", afirma Toffano.

"Na década de 20 houve um espaço específico em que as mulheres
puderam se colocar como pianistas. Hoje, embora haja muitas pianistas
excelentes, os homens continuam a carreira até o topo -como antes não ocorria.
Souza Lima [1898-1982], por exemplo: foi um pianista brilhante, no entanto a
história o conhece como maestro e compositor."

A prevalência feminina não é compensada com celebridade: nomes como Arthur
Moreira Lima ou Nelson Freire são mais lembrados como exemplos profissionais do
que suas contrapartes femininas.

Para Toffano, que é também pianista, o instrumento já superou o
preconceito machista, mas de maneira geral a música ainda fomenta a idéia de
gênio do gênero: "No piano isso é superado. Chiquinha Gonzaga sofreu ainda
muito preconceito, mas Guiomar Novaes, Antonietta Rudge e Magda Tagliaferro são
ícones que todos admiram. Ainda há muito preconceito em outras funções, como
com as regentes. Muitos se incomodam ao vê-las -é um estereótipo. É um espaço
que a mulher ainda não ocupou."

Ricardo Mielli, que é maestro da orquestra do conservatório de São Paulo,
reage: "É exagero falar que só homem rege. Temos a Ligia Amadio [Orquestra
Sinfônica Nacional – UFF]; em São Paulo há a Banda Sinfônica do Estado [cuja
regente assistente é Érika Hindrikson]".

Acúmulo

Arnaldo Cohen é um dos pianistas contemporâneos estudados por Toffano, um
representante da "geração "jet-lag ". "Esse termo surgiu em
entrevista com Nelson Freire, que falou sobre viajar muito de avião para
cumprir compromissos", disse a professora, chamando a atenção a mais um
problema do trabalho da pianista: conciliar as viagens de trabalho com os
afazeres domésticos.

"Arnaldo Cohen conta que, quando Jacques Klein [1930-82] o ouviu,
disse: "Você tem todos os ingredientes para ser um pianista
internacional". Cohen tinha 13 anos. Analiso: o primeiro ingrediente é que
era um homem! A mulher ainda se desencoraja pelas tarefas de casa." A
professora usa esse desencorajamento para explicar números incluídos no livro
segundo os quais, de um grupo de estudantes de piano em nível universitário nos
anos 90, 58% dos homens declararam ter pretensão de seguir carreira de concertista,
contra 31% das mulheres.

Enquanto 17% deles declaravam-se contentes em "ser um bom
músico", 54% das mulheres responderam o mesmo.

"As mulheres são mais calmas, não vislumbram uma carreira muito alta.
Atribuo isso ao fato de a mulher continuar com a barreira dos papéis
domésticos: sonha com o casamento, sabe que as tarefas com os filhos conflitam
com a dedicação exclusiva, com o agendamento de concertos internacionais."

Quanto à carreira internacional, Toffano diz que o problema não é ser
mulher, é ser brasileiro. "A luta é a mesma. O solista tradicional está em
desvantagem em relação a Estados Unidos e Europa. Aqui é mais difícil ser
pianista da maneira tradicional, aquele que se apresenta como solista na sala
de concerto, do que lá fora. Mas há o Moreira Lima, cuja realização é ir aos
cantos mais longínquos, menos desenvolvidos do Brasil, e ver a reação que causa
nas pessoas. É um missionário. Há espaços infinitos neste país, há público
interessado."

Equilíbrio

Se o menor ingresso de mulheres nos conservatórios, influenciado pela
desvalorização das prendas domésticas, e o mercado de trabalho mais aberto,
numa situação em que o intérprete não é mais visto como mero
"tocador" dos compositores, ajudam a equilibrar a disputa entre os
gêneros pelo sucesso ao piano, persiste ainda o tabu generalizado da divisão de
tarefas domésticas.

"Quando vejo uma mulher brilhando na música, penso: ou está pagando
um preço alto, deixando muita coisa para trás, ou encontrou um homem que
colabora", comenta Toffano.

"O fator doméstico propiciava a procura da mulher, e isso acabou.
Hoje essa carreira é um acaso, antes não era um acaso: era um dos pouco
caminhos para a mulher sair do anonimato, do cotidiano de pouco brilho."

 

Categorias: Música

1 comentário

Os comentários estão fechados.

× clique aqui e fale conosco pelo whatsapp