O
Estado de São Paulo, Domingo, 24 de Janeiro de
2010 | Versão
Impressa

Universidade
vai a periferias e
prisões para tentar entender o PCC

“Estado”
promoveu debate entre 4 pesquisadores que
fizeram teses e dissertações sobre
organização criminosa

Bruno Paes Manso

Professor do Departamento de
Sociologia da Universidade
Federal de São Carlos (UFSCar), Gabriel Feltran, de 34 anos,
começou a estudar
as periferias de São Paulo interessado nas
mudanças sociais. Durante as
pesquisas, que viraram tese de doutorado premiada ano passado pela
Associação
Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa
em Ciências Sociais, foi impossível deixar
de falar sobre o Primeiro Comando da Capital, sempre presente nas
conversas.

A antropóloga Karina
Biondi, de 32 anos, atualmente faz
doutorado na UFSCar. Começou a estudar o PCC depois que o
marido foi preso, em
2003. Durante as visitas, fez pesquisas de campo cujo material deu
origem à
dissertação Junto e Misturado: uma etnografia do
PCC, que em março será
publicada em livro pela Editora Terceiro Nome. O marido dela, depois de
cinco
anos preso à espera de julgamento, foi inocentado. 

A
dissertação da socióloga Camila Nunes,
A igreja como
refúgio e a Bíblia como esconderijo:
religião e violência na prisão,
concluída
na USP, também virou livro (Editora Humanitas). Agora, ela
finaliza doutorado
com base em pesquisas em presídios paulistas. O
antropólogo Adalton Marques, de
27 anos, defende sua dissertação em Antropologia
na USP em fevereiro, chamada
Crime, proceder, convívio-seguro – um experimento
antropológico a partir de
relações entre ladrões. Na semana
passada, eles travaram com o Estado o debate
abaixo:

Qual é o tamanho do
PCC e que papel exerce?

Camila – É
difícil dimensionar o tamanho do PCC, mas de
acordo com minhas pesquisas em unidades prisionais, o PCC tem
influência em
cerca de 90% das 147 prisões paulistas. Essa
influência é um tanto quanto
diversificada em cada uma das unidades, a depender das
relações que se
estabelece com a administração do local, na qual
se estabelecem seus limites. No
Estado, há 6 ou 7 unidades que são controladas
por outros grupos ou que são
chamadas “neutras” designando, assim, a inexistência das
chamadas
“facções”. Essas unidades, contudo,
não permitem a entrada de presos
que pertencem às facções e para elas
são transferidos os presos que
anteriormente ficavam no “seguro”. Ou seja, se um preso que se
encontra numa penitenciária controlada pelo PCC sente-se
ameaçado e pede
“seguro”, ele provavelmente será transferido para uma dessas
unidades
“neutras”. 

Gabriel – Do lado de fora das
prisões a lógica é
exatamente a mesma. Ouço relatos de que “agora é
tudo PCC”,
referindo-se ao “mundo do crime” nas periferias há alguns
anos. Mas
ao olhar os detalhes, aparecem situações
curiosas. Por vezes, o PCC está mesmo
onde não há um “irmão”. Por exemplo,
um ponto de venda de maconha e
cocaína, numa das favelas em que estudo, não
é gerenciado por nenhum
“irmão” (os outros pontos são). No entanto, quem
gerencia esse ponto,
uma pessoa respeitada na favela, lida bem com a presença do
PCC e diz também
concordar com “a lei” dos “irmãos”. Não saberia
dizer o
quanto casos como esse são frequentes, e também
me surpreenderia se alguém
soubesse fazê-lo, mesmo entre os integrantes da
facção.

Adalton – Considero um
equívoco pensar o PCC a partir de
quantificação dos “batizados”, bem como de
mensuração da extensão dos
efeitos provocados por suas ações. O PCC
não é somente um aglomerado de membros
e de ações. Antes, se trata de um conjunto
singular de enunciados, forte (o que
não quer dizer necessariamente violento) o bastante para
afirmar a “paz
dos ladrão” – “ladrões” são os
“considerados” como
tais, é claro – e a “disposição pra
bater de frente com os polícia” e
“pra quebrar cadeia”, fugir. Imprescindível dizer que a
efetuação
dessas coisas não depende da presença de
“batizado”. Mais decisivo
que a mensuração de extensões,
é perceber que isso que se chama PCC se efetua
nos quatro cantos da cidade.

Karina – Minha pesquisa revelou
que o PCC tem dois
grandes papéis nas prisões: ao mesmo tempo em que
regula a relação entre os
prisioneiros, é uma instância representativa da
população carcerária frente ao
corpo de funcionários das prisões. O
número de “irmãos” é
desconhecido até por eles próprios.
Surpreenderia-me saber que algum deles tem esse
controle, já que um “irmão sequer conhece todos
os seus outros
“IRMÃOS”.

Marcola é o chefe?
Quais mudanças ele implantou?

Karina – Não
só Marcola não exerce esse papel, como
não
existe no PCC uma forma de liderança que pressuponha uma
hierarquia piramidal,
uma estrutura rígida ou formas de mando e
obediência. Isso porque, com a saída
do Geleião (ex-líder do PCC), Marcola promoveu a
inserção da
“igualdade” ao lema e às práticas do PCC que, com
isso, sofreu
profundas transformações, dentre elas a
extinção de lideranças sobre os demais
integrantes. Essas transformações – que
não param de acontecer – são como
antídotos a quaisquer manifestações de
mando ou de qualquer relação que venha a
ferir o princípio de “igualdade”.

Camila – O PCC mudou bastante.
Houve uma racionalização
do seu modo de operar. Nos primeiros anos de existência,
quando havia a
necessidade de expansão e conquista de
territórios, além do discurso de
necessidade de união da população
carcerária para lutar contra a opressão do
Estado, era necessária a imposição de
seu domínio a partir da demonstração
da
violência explícita contra aqueles que rejeitavam
ou eram recalcitrantes em
aceitar esse domínio. Por isso, na década de 1990
– até o início dos anos 2000
-, assistia-se cenas grotescas de violência no sistema
carcerário, muitas delas
protagonizadas pelo PCC, que fazia questão de explicitar sua
capacidade de
imposição da violência
física, especialmente durante as muitas rebeliões
do
período. Essa explicitação da
violência era importante para demonstrar o seu
poder para os presos e para o Estado. A partir de 2003, 2004, o PCC
alcança uma
relativa hegemonia no sistema prisional – e, talvez, em algumas
atividades fora
dele – o que torna o exercício expressivo da
violência física, como
punição aos
“traidores”, desnecessária. 

Adalton – Houve uma
mudança decisiva entre o final do ano
de 2002 e o início de 2003. Geleião e Cesinha, os
dois últimos fundadores
vivos, foram “escorraçados” – essa é a palavra
usada – pelos presos e
mandados para o seguro. Diz-se que Marcola teve um papel decisivo tanto
para
mostrar aos presos a situação a que se submetiam
quanto na guerra travada
contra os dois fundadores. É comum ouvir que Marcola bateu
de frente com os
fundadores e recebeu apoio total da população
carcerária. Desde então, foi
extirpada a posição política do
fundador, bem como a figura de general. Foi
eliminada por completo a diferença entre os fundadores e
“irmãos”. Já
não mais haveria diferenças absolutas entre os
relacionados ao PCC, mas só
diferenças de “caminhadas”.

O que mudou dentro e fora das
prisões com a facção?

Gabriel – Há muitas
evidências empíricas de que o PCC
pode ter interferido diretamente na queda dos homicídios.
Durante pesquisa de
campo, quando se comenta por que não morrem mais jovens como
antes, as
explicações oferecidas são
três: “porque já morreu tudo”;
“porque prenderam tudo” e “porque não pode mais matar”, a
mais recorrente. Levei bastante tempo para compreender essas
três afirmações,
entender que elas me falavam de uma modificação
radical na regulação da
violência – e do homicídio – nas periferias de
São Paulo. E que essa regulação
tem a ver com a presença do PCC. Quando me dizem na favela
“porque não
pode mais matar”, está sendo dito que um
princípio instituído nos
territórios em que o PCC está presente
é que a morte de alguém só se decide
em
sentença coletiva, e legitimada por uma espécie
de “tribunal”
composto por pessoas respeitadas do “Comando”. Esses julgamentos,
conhecidos como “debates”, podem ser muito rápidos ou
extremamente
sofisticados, teleconferências de celular de sete
presídios. Eles produzem um
ordenamento interno ao “mundo do crime”, que vale tanto dentro quanto
fora das prisões. Evidente que a hegemonia do PCC nesse
mundo facilitou sua
implementação. Com esses debates, aquele menino
que antes devia matar um colega
por uma dívida de R$ 5 para ser respeitado agora
não pode mais matar. 

Karina – São muitas
as mudanças que ocorreram nas prisões
após o nascimento do PCC: diminuição
no número de homicídios e das
agressões
entre prisioneiros, fim do consumo de crack e de abusos sexuais,
não se vende
mais espaço na cela, não se troca favor com
agentes penitenciários em benefício
próprio em detrimento de outros, não se fala
palavrões. Mas é importante
lembrar que essas mudanças não são
frutos de leis, decretos ou imposições. Suas
propostas nascem de amplos debates e são expandidas e
adotadas paulatinamente,
não sem resistências e
diferenciações na condução
dessas políticas. É muito
comum uma unidade prisional funcionar de forma diferente de outras,
principalmente no que diz respeito a mudanças ainda
não tão cristalizadas.

Camila – A mudança
fundamental foi a criação de uma
instância de regulação das
relações sociais na prisão. O PCC se
constituiu como
instância reguladora, de imposição e
controle do cumprimento das regras, assim
como de punição aos transgressores.
Não se tratava mais de um domínio baseado
puramente na violência e na ameaça e nem mais era
uma dominação
individualizada: trata-se agora de um grupo,
organização. A regulação
das
relações sociais passou a ser mais
“institucionalizada”, menos
dependente de indivíduos e, portanto, mais
estável.

Por que os ataques? Como acabar
com o PCC?

Karina – Os ataques de 2006
desencadearam um grande
movimento autorreflexivo no PCC. De acordo com essas
reflexões, os ataques
foram reações às
provocações do governo de São Paulo,
cuja finalidade seria a
de mostrar sua força e, assim, conseguir pontos na corrida
eleitoral em
andamento à época. Essa é a
análise que os próprios protagonistas dos ataques
elaboraram, não cabe a mim questioná-la. Nesse
mesmo movimento reflexivo,
avalia-se que os ataques não foram a melhor maneira para
chamar a atenção dos
cidadãos para o que ocorria no interior das
prisões. De lá para cá,
vêm-se
buscando outras formas de articulação e
diálogo, com pouco sucesso, entretanto.
Afinal, como criminosos podem se articular, mesmo que para reivindicar
o
cumprimento da Lei de Execuções Penais, sem que
constituam uma
“organização criminosa”? Se novos ataques
ocorrerão, não é possível
prever. Isso depende de inúmeros fatores, muitos deles
sequer previsíveis.

Gabriel – Representaram uma
manifestação de força da
facção frente às forças
policiais, que estabelece novos parâmetros para a
negociação. Ouvi no campo que há
negociação entre PCC e funcionários do
Estado
e polícias. Ela se dá em bases distintas depois
de uma demonstração como a de
2006. Mas os ataques também demonstraram o que significa
colocar em xeque a
força do Estado: os eventos contabilizaram 493 mortos em uma
semana. Cerca de
50 mortes foram atribuídas ao PCC, cento e poucas
oficialmente à polícia. Mais
de 200 mortes permaneceram sem sequer hipótese
investigativa. Se outros ataques
vão ocorrer seria futurologia, não há
como dizer. Estava em campo em maio de
2006 e não consegui prever os eventos. As causas desses
eventos são complexas e
dependem de negociações às quais temos
pouco acesso. No entanto, não me
surpreenderia se voltassem a ocorrer, já que os atores
principais seguem em
cena.

Camila – Não sei
como acabar com o PCC mas de uma coisa
tenho certeza: o aumento da repressão dentro e fora das
prisões, a carta branca
que parece ter a polícia para matar na periferia e outras
formas mais de
desrespeito aos direitos da população pobre da
periferia e dos presos são elementos
que fortalecem o PCC, conferem legitimidade ao seu domínio,
enquanto enfraquece
cada vez mais a confiança nas
instituições públicas de
segurança. 



1 comentário

Os comentários estão fechados.

× clique aqui e fale conosco pelo whatsapp