UOL EDUCAÇÃO
– 20/03/2019 – SÃO PAULO, SP
Com arquitetura
do medo, escolas viram ambiente
tóxico
NOVA ESCOLA
Instituições
públicas parecem presídios, isolam educadores e
marginalizam alunos
Depois
da tragédia de Suzano, resolvi reler “O
Ateneu”, obra do escritor brasileiro Raul Pompeia. Publicado
em 1888, o livro é
uma pequena joia da literatura brasileira. Se você
não leu, recomendo. Ele é
uma janela para o passado e para o futuro da
educação brasileira. Explico.
Em
linhas gerais, o livro tece as memórias do
narrador, Sérgio. Ele narra o período de
crescimento e amadurecimento que
passou no Ateneu, um dos melhores colégios do Rio de
Janeiro, então a capital
do país. Além da experiência
estética e de empatia que só a boa literatura
oferece, Pompeia constrói uma visão muito
original sobre a escola e sua relação
com a época.
“O
Ateneu” fala dos privilégios recebidos pelos
filhos da elite, das tensões dentro de uma aristocracia
decadente, da ascensão
meio torta de famílias de classe média,
especialmente de imigrantes, e dos
maneirismos e obsessões de quem comanda uma
instituição de ensino – diretores e
coordenadores pedagógicos provavelmente vão
encontrar muitos pontos para pensar
durante a leitura deste livro centenário. Mas ele
não fica apenas no
impressionismo. O livro nos abre uma janela para o mundo interior dos
alunos,
suas inseguranças e expectativas. Nisso, ele é
absolutamente singular. Sérgio
somos nós.
Há
poucos livros, de ficção ou não, sobre
a
subjetividade de professores e alunos. Há ótimas
pesquisas sobre clima escolar
e construção de valores morais dentro da escola.
Telma Vinha, professora da
Unicamp, aliás, é referência nessa
área – vale ver esse vídeo dela feito
para a
Nova Escola.
Porém,
falta um olhar mais agudo e profundo sobre
pensamentos e sentimentos de quem vive a escola todo dia.
Não à toa, apoio
psicológico é um pedido incessante dos educadores
brasileiros. E eles quase
nunca são ouvidos quanto a isso. Nós ignoramos a
saúde mental de quem ensina e
de quem aprende. Não há política
pública sobre isso e o tabu ainda é grande.
Afinal, vivemos num país em que a depressão
é tratada com estigma, como
fraqueza ou falta de fé. Por isso que “O
Ateneu” segue imprescindível. Embora
vários dos seus temas estejam soterrados pelo tempo,
especialmente no retrato
do Brasil do fim do século 19, algumas grandes
questões continuam lá.
Em
boa parte das instituições de ensino,
professores e alunos estão em campos opostos, como se fossem
dois inimigos num
duelo. A relação entre o corpo de professores
também não é grande coisa e, com
as famílias, o amor acabou faz tempo. Quando você
vai para o mundo dos alunos,
a situação também é
periclitante. Como lembra o “Ateneu”, a escola
não é
necessariamente um reflexo da sociedade. O mais preciso é
dizer que a escola é
uma panela de pressão da sociedade.
Todas
as tensões do país se manifestam com ainda
mais intensidade dentro das instituições de
ensino. É fácil entender o motivo.
Os alunos são tomados por hormônios e
expectativas, numa fase de grande mudança
física e mental. Ao mesmo tempo, estão
respondendo a demandas que eles mal
entendem – imagine como foi dar aula ou aprender nesses
quatro anos de
polarização e violência no
país. Por fim, essa panela tem formato de
presídio.
Alunos e professores são sufocados por grades e muros, com
um sistema de
organização que preza pela
punição em vez da prevenção.
A
arquitetura do medo, compreensível pelos números
de violência do país, acaba tendo efeitos
perversos com o tempo. O medo
organiza os espaços e as relações
entre as pessoas. Na falta de um projeto
educacional, o medo vira pilar do projeto pedagógico.
Resultado? Temos uma
escola tóxica, que envenena seus professores e
funcionários. Suzano é um caso
extremo, mas está longe de ser um caso isolado.
Agressões, armas, ofensas,
xingamentos, tudo isso faz parte da rotina de muitos estudantes e
educadores
Brasil afora. E, sinto informar, isso não se resolve com
aulas de moral e
cívica ou com colégios
cívico-militares. O buraco é mais embaixo.
Precisamos
nomear os problemas, um por um, para diminuir a pressão
dentro da escola.
Ao
longo dos últimos anos, repetimos a frase “se a
educação fosse melhor, o Brasil não
estaria nessa situação”. Cobramos da
escola
responsabilidades que ela possui (educar as crianças e
adolescentes) e exigimos
que ela resolva problemas que não lhe compete (resolver as
crises sociais,
políticas e econômicas do Brasil). Isso
não está funcionando. À escola o que
cabe à escola. Em vez de perguntar o que a escola pode fazer
por nós,
precisamos perguntar o que nós podemos fazer pelos nossos
alunos e alunas, diretores,
coordenadores, professores e funcionários.
E, se
me permite, tenho uma sugestão: prefeitos,
governadores e o MEC precisam se unir para levar programas de
saúde mental
sólidos e duradouros para cada
instituição de ensino do país. Isso
terá
resultados muito melhores em índices de violência
do que a transformação dos
colégios em instituições militares.
Sim, não se combate revólver com
psicólogo.
Mas talvez a gente consiga tirar a arma das profundezas mentais das
pessoas
antes que elas se transformem no que são: objetos para matar
e morrer. A
prevenção ainda é o melhor
remédio.
Ah,
em tempo: “O Ateneu” pega fogo no final. A
escola sob ataque não é uma
invenção do século 21. O problema
não vai se
resolver com uma volta a um passado inexistente.
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