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O Estado de São Paulo, 21 de dezembro de 2013 | 16h 01

Menos-valia

Sociólogo vê
“regressão à barbárie” e analisa o acúmulo de funções, a falta de segurança e a
ausência de lazer

Mônica Manir – O Estado de S. Paulo

Elísio Estanque não vai estar dando respostas prontas
nesta entrevista. Vindo do Alentejo, ele obviamente não prima pelos gerúndios
característicos do infoproletariado, a massa de trabalhadores dos call centers.
Mas a questão é mais que gramatical. Esse sociólogo de 61 anos se diz contra
seguidismos e alinhamentos cegos. Tem estilo próprio. E vai direto ao ponto: "O
que vemos nas duas últimas décadas é uma regressão à autêntica barbárie no mundo
do trabalho".

Caso de Mita Diran (foto) chamou atenção para as
jornadas excessivas de trabalho

Professor da Universidade de Coimbra, Elísio sentiu a
feia crise em seu país. No entanto, quando fala de barbárie, não trata apenas do
desemprego brutal entre os jovens portugueses. Quer discutir por que
trabalhadores em geral – e não só os infoproletários – se distanciaram dos
sindicatos e se trancafiaram num "individualismo negativo", sem direitos sociais
básicos. "Ninguém imaginava que, mesmo nas democracias avançadas, iriam surgir
fenômenos de degradação humana nesse nível", afirma.

Ele fala de acúmulo de funções, de falta de
segurança, de alta rotatividade, de vigilância escamoteada, de ausência de
lazer, de exaustão. Opina sobre o paradigma desenvolvimentista do Brasil, onde a
taxa de desemprego de novembro, 4,6%, é mínima histórica. Também tem interesse
em comparar a classe média portuguesa com a nossa "nova classe média", de que
ele desconfia, e faz isso tudo a partir de Campinas, onde está desde janeiro
como professor visitante da Unicamp, em companhia da mulher ucraniana.

Causou surpresa, na semana passada, o caso da
redatora de uma agência de publicidade da Indonésia que morreu após trabalhar
três dias seguidos em frente do computador. O pai dela, diretor executivo de
outra agência, disse que a filha passara de seu limite. Como medir esse limite
em tempos de infoproletariado?

Ao tomar esse evento apenas como ilustração de muitos
milhares de outros que têm acontecido nos últimos tempos, eu diria que essa
pressão que faz com que o trabalhador seja levado pra lá do suportável das
capacidades humanas depende de um clima geral que está a exaurir a classe. Esse
clima tem despojado o trabalhador daquilo que são – ou que foram – alguns
direitos de segurança, de inserção social e de recompensas materiais e
salariais. Nas últimas duas décadas houve uma inversão na lógica do
funcionamento da economia. O mercantilismo se reforçou e está a individualizar
mais as relações de trabalho. As pessoas ficam sob um controle ainda maior na
medição dos indicadores da produtividade, dependente de serem ou não capazes de
alcançar objetivos muitas vezes insuperáveis. Portanto, nesse caso da Indonésia
e também em muitos acidentes de trabalho em que questões de segurança são
descuradas, tudo representa uma vulnerabilidade muitíssimo grande do
trabalhador. E isso acontece tanto em segmentos mais qualificados e de ensino
superior como naqueles de menor qualificação e trabalho indiferenciado. Temos na
construção civil, por exemplo, vários exemplos de risco que levam os
trabalhadores a sofrer acidentes físicos, inclusive.

Nessa semana, aliás, ocorreu a morte de um
operário na Arena Amazônia motivada, diz o sindicato da categoria, pela correria
dos trabalhadores para entregar o estádio no prazo. Há na história momento
semelhante de tamanha vulnerabilidade do trabalhador?

Nos anos 1990, Ulrich Beck, alemão que estuda essas
temáticas, falava da brasileirização do mundo. Pensava na enorme precarização da
força de trabalho na qual não há praticamente direitos, e sim uma enorme
rotatividade e instabilidade. Só que, na Europa, não se esperava que ela fosse
tão brusca, tensa e violenta. É um individualismo negativo que faz lembrar
aquele que existia antes da Revolução Francesa, antes de a sociedade industrial
moderna estar consolidada. Era o trabalhador colocado como força bruta, como
mercadoria, totalmente dependente daquilo que fosse do interesse das entidades
empregadoras. O que assistimos nas últimas duas décadas é uma espécie de
regressão a esse período de autêntica barbárie. E isso é vivido, no caso dos
trabalhadores da Europa, depois de eles terem passado por três décadas da
chamada época de ouro do Estado previdente, quando a conquista de direitos
repunha o trabalho num estatuto de reconhecimento social. Há sete, oito anos,
ninguém imaginava que, mesmo nas democracias mais avançadas, surgiriam fenômenos
e situações de tamanha degradação humana.

Isso, de alguma forma, tem a ver com a
inovação tecnológica?

A inovação tecnológica tem sempre duas faces: a
brilhante e a obscura. Há muito se vinha discutindo que, com a tecnologia, o
trabalhador ficaria mais liberto do componente mais duro do trabalho, podendo
usufruir de mais tempo livre. Mas a inovação tecnológica não tem acarretado
consigo mais liberdade, mais autonomia, mais emancipação. Ao contrário: permite
uma vigilância mais apertada. Ela cria uma precariedade que não é apenas
objetiva e material, mas também psicológica, o que leva o trabalhador a recriar
os instrumentos da própria vulnerabilidade.

Como isso acontece?

O trabalhador é colocado numa situação vulnerável não
apenas porque sabe que pode ser deslocado de um momento para outro ou ser
facilmente demitido, mas também porque incorpora a ideia de que é preferível
aceitar qualquer que seja a condição de trabalho a não ter nenhum. Daí que
concorda em ser colocado numa posição de maior dependência. E aceita de certo
modo ser explorado até a exaustão, como naquela situação à qual nos referimos no
início. Isso acontece na relação assimétrica de poder que ele mantém com a
entidade patronal, uma entidade que muitas vezes nem conhece pessoalmente.

O acúmulo de funções seria uma faceta dessa
exploração?

Isso se insere no paradigma das empresas enxutas,
retórica enfocada a partir dos anos 1980 com o chamado Consenso de Washington,
que levou a uma globalização maior dos mercados. Isso intensificou imensos
fluxos do capitalismo financeiro e colocou o capitalismo produtivo a sua mercê.
Na prática, isso se traduziu na tentativa de espremer ao máximo o trabalhador
que fica na empresa, fez com que a polivalência deixasse de ser sinônimo de
maior autonomia e margem de opção do trabalhador para torná-lo mais dependente
de uma competitividade castigante. Dentro das empresas também há uma condição
muito estimulada entre os trabalhadores, os prêmios de produtividade, que muitas
vezes são ilusão. Se olharmos de um lado a multiplicação do lucro da atividade
financeira e de outro os salários, há uma distância que se foi elevando nas
últimas décadas em todos os países, a começar pelos EUA. Resumindo, essa
multiplicidade de competências aconteceu por imposição de cima para baixo. A
margem de negociação foi desaparecendo porque o próprio campo sindical deixou de
negociar as condições de trabalho, entre elas também as horas extras.

No caso das horas extras, seria o momento de
resgatar o cartão de ponto?

O cartão de ponto nos remete aos setores mais
burocráticos, aos setores dos servidores públicos, nos quais, apesar de tudo,
ainda existe alguma previsibilidade. A pessoa sabe que, quando deixar o local de
trabalho, estará livre. Mas me parece que essas situações sejam cada vez mais
excepcionais porque os servidores públicos – pelo menos na Europa, no Brasil
ainda é diferente -, estão sendo igualmente descartados, enquanto os recursos
públicos seguem muitas vezes a lógica do privatismo. Eu diria que o cartão de
ponto, neste momento, está no bolso de todo mundo. Está no celular, no
computador, nos imensos meios técnicos que as empresas possuem para controlar o
que cada um está a fazer a cada momento.

Como esse trabalhador pode reagir?

Desde que o capitalismo moderno se consolidou
surgiram conflitos, como o movimento ludista, em que os trabalhadores destruíram
as máquinas por temer que elas viessem a substituí-los no emprego. Mas eles logo
aprenderam que, sozinhos e isolados, não conseguiriam resistir de modo nenhum. A
resposta tinha de ser coletiva, por força do movimento sindical, que nos países
mais avançados foi sendo institucionalizado e trouxe imensas conquistas para as
condições de vida. Mas hoje, num salto histórico para este momento de regressão,
os sindicatos estão a ser o principal alvo da força do grande capital
internacional. Houve uma viragem de paradigma nas últimas duas ou três décadas.
Os sindicatos temem ser agressivos, estão muito enfraquecidos. Em parte porque,
seja no infoproletariado ou em outros vínculos laborais, as empresas e o
trabalho tendem a ser terceirizados. Note-se por exemplo que, aqui no Brasil,
cerca de 1/3 da força de trabalho é terceirizada. Em Portugal, mais de 30% dos
trabalhadores estão com contrato a termo certo, ou seja, estão em situação de
precariedade. As novas gerações de força de trabalho vão entrando no mercado em
condição particularmente precária e dependente, individualizada e com medo.

Esse jovem não procura o sindicato?

Apesar de muitas vezes esse jovem ser
sobrequalificado, pelo menos na Europa, já que o desemprego atinge mais aqueles
que passaram pela universidade, ele não procura os sindicatos. E por duas
razões: uma é a pressão que existe dentro das instituições do mercado de
trabalho quanto a isso; outra é o déficit de confiança que as novas gerações têm
rotineiramente em relação ao sindicalismo. Ou seja, o próprio sindicalismo
também não soube renovar-se e adaptar-se para responder de modo mais eficaz a
esses problemas.

Portugal anunciou que gastará € 300 milhões
para combater o desemprego jovem. Isso é suficiente?

Esse valor é, com certeza, insuficiente para
programas de incentivo ao emprego de jovens que, na faixa abaixo dos 30 anos,
ultrapassam os 40% de desempregados em Portugal. Na Espanha, são 50%. É
insuficiente sobretudo se não for acompanhado de outras políticas de incentivo à
recuperação da economia, o que só pode acontecer se houver, de novo, um
investimento e uma alavancagem por parte do poder público e da intervenção
estatal. Porque, desastrosamente, esse paradigma neoliberal parte do princípio
de que tudo que é privado é eficaz e tudo que é público é custoso. Se a economia
não crescer, se não houver mais oferta de emprego e trabalho assalariado, é
obvio que esses jovens continuarão a sentir-se sem futuro, em busca de qualquer
saída. No caso de Portugal, a saída tem sido migrar para a Alemanha, Holanda,
Luxemburgo e França, ou mesmo para o Brasil.

O desemprego no Brasil caiu para 4,6% em
novembro, mínima histórica antes do fim do ano. O senhor vê esse cenário com
otimismo?

O que tem acontecido no Brasil é um crescimento
econômico muito significativo e uma melhoria notória nas condições de trabalho,
porém justamente porque a base de partida era extremamente degradante e
miserável para muitos setores. E, ainda hoje, apesar das melhoras em termos de
formalização do emprego em relação há 15 anos, repara-se nos altíssimos
porcentuais de rotatividade. Minha leitura vale para todas as sociedades: quando
se avança segundo uma orientação progressista e emancipatória de maior coesão
social, maior dignidade para as classes trabalhadoras, maior acesso à saúde, à
educação, à cultura, ao descanso da mente, aí estaremos a caminhar no bom
sentido. Se o paradigma desenvolvimentista do Brasil sair triunfante dessa
encruzilhada em que nos encontramos, é possível que a classe trabalhadora, nas
próximas décadas, vá se beneficiar disso. Mas neste momento há uma grande
incerteza nesse sentido. Os poderes do capitalismo global são realmente
esmagadores. 


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