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Folha de São
Paulo, São Paulo, domingo, 11 de maio de 2008

Negros têm só 3,5% dos
cargos de chefia

Mercado de trabalho, 120 anos depois da Lei Áurea,
oferece oportunidades restritas de ascensão na hierarquia das empresas

Preconceito e acesso limitado à educação são
apontados como grandes barreiras para os negros, que são 49,5% da população

DENYSE GODOY,
DA REPORTAGEM LOCAL

Quem olha ao redor no seu ambiente de trabalho constata
que há muito poucos colegas negros. Chefes, então, são raríssimos. Se não
surpreendem, por mostrarem uma realidade facilmente perceptível, os números a
respeito da presença de negros em cargos de nível executivo nas maiores
companhias brasileiras -apenas 3,5%, segundo pesquisa do Ibope com o Instituto
Ethos- chamam a atenção para um cenário que empresas e profissionais se
acostumaram a tratar com naturalidade. Mas os negros são 49,5% da população do
país.

"Eis o resumo da história desde a Lei Áurea, que depois
de amanhã completa 120 anos. Mantivemos intacta uma estrutura excludente e
discriminatória com base na cor da pele. O topo da hierarquia das firmas não é
diferente de outros lugares de prestígio e status na nossa sociedade", diz José
Vicente, presidente da ONG Afrobras e reitor da Unipalmares (Universidade da
Cidadania Zumbi dos Palmares).

"A cultura corporativa de um mundo homogêneo vai se
reproduzindo. Como os espaços de convivência públicos e familiares são
predominantemente brancos, quando é preciso escolher um novo membro para o
grupo, as pessoas acabam buscando dentro do espaço que conhecem e no qual se
inserem", completa Cláudio Dedecca, professor do Instituto de Economia da
Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).

Para as mulheres negras, a situação é ainda mais cruel,
já que elas sofrem um duplo preconceito. De acordo com o levantamento
Ibope/Instituto Ethos, feito em 2007, não chega a 0,5% a porcentagem de negras
em cargos executivos. "As que rompem as barreiras não conseguem se incluir no
cotidiano. É muito grave", frisa Eliana Maria Custódio, coordenadora-executiva
do Geledés (Instituto da Mulher Negra).

Na opinião dos especialistas, uma das explicações para o
fato de os negros não alcançarem postos mais altos dentro das corporações é o
seu limitado acesso a educação básica e superior de qualidade, o que os impede
de entrar nas empresas em qualquer tipo de posto. Comparando com outros
candidatos, que estudaram em escola particular, cursaram universidades de elite
e aprenderam vários idiomas, eles ficam em enorme desvantagem.

A outra razão é o preconceito velado. "O senso comum é
que o negro não tem qualificação ou competência intelectual. Assim ele é visto",
resume Vicente. Executivos negros ouvidos pela Folha contam não terem
sido alvo de manifestações explícitas de discriminação -o que ocorre com
freqüência, dizem, são estranhamentos por parte de colegas e clientes,
desacostumados a conviver com eles.

Consultorias de recrutamento e seleção e os
departamentos de recursos humanos das empresas sustentam que não existe nenhuma
espécie de filtragem dos candidatos por cor. "Isso não é mencionado nos
currículos. Os interessados são chamados pela sua qualificação. Só quando
adentram a sala é que sabemos se são verdes ou azuis", afirma Carlos Diz,
diretor do Instituto de Liderança Executiva. "Antes, fui "head- hunter"
["caçador de talentos"] por dez anos. Devo ter entrevistado cerca de 6.000
pessoas. Houve apenas um negro."

As críticas de que as firmas de seleção não escolhem
negros porque os avaliadores são brancos não fazem sentido, diz Fátima Zorzato,
presidente da consultoria Russell Reynolds no Brasil. "Basta dizer que o meu
chefe, baseado em Nova York, é um afro-americano."

 Mudanças

"Os números são críticos nas 500 maiores empresas.
Podemos imaginar, então, um quadro ainda mais pessimista no restante", comenta
Hélio Gastaldi, diretor de atendimento e planejamento do Ibope.

Pesquisas como a que ele coordena estão servindo de
alerta para que as companhias tomem alguma atitude a fim de começar a corrigir
as distorções. "O objetivo do levantamento é trazer uma informação inconteste.
Geralmente, os gestores fazem uma avaliação mais positiva do que está
acontecendo: 34% responderam sim, quando questionados se a proporção de negros
no patamar executivo é adequada. Confrontados com dados objetivos, eles são
obrigados a fazer uma reflexão." Na opinião de Gastaldi, isso é porque o
brasileiro em qualquer assunto tem facilidade de fazer críticas no coletivo, mas
não reconhece os problemas nele próprio.

Entretanto, Vicente aponta que está tendo início uma transformação nesse campo:
"A globalização é uma manifestação da diversidade da qual não dá para escapar.
As empresas precisam se adequar, pois qualquer pessoa minimamente esclarecida
começa a perceber as incongruências e as pressiona. O Brasil não pode ser um
país multicultural para quem vê de fora e branco por dentro."

Avanço só
virá com mudança na educação, diz especialista


Companhias adotam incentivos, mas ainda faltam
políticas públicas, afirma professor


Empresas contratam negros e tentam mudar cultura
interna; idéia é que valorizar a diversidade racial traz ganho sobre
concorrentes

DA REPORTAGEM LOCAL

As empresas notaram que valorizar a multiplicidade
racial é uma vantagem competitiva. "Como uma fábrica vai vender produtos para
uma comunidade diversificada se os seus quadros não refletem o que existe na
sociedade? Ela não conseguirá detectar o que pensa e do que precisa o seu
consumidor", explica Fábio Pereira, "head- hunter" da Michael Page.

As principais estratégias adotadas para tentar deixar
as estruturas corporativas mais igualitárias têm como foco a admissão dos
funcionários e a cultura corporativa.

As ações sobre a cultura têm como objetivo quebrar os
estigmas que os funcionários trazem consigo. Assim, a idéia é que eles possam
atuar depois como agentes de transformação dentro e fora do escritório.

O Wal-Mart organiza palestras e formou um grupo para
discutir o assunto raça. "Queremos diminuir as distâncias construídas durante
tanto tempo no país. Dos nossos colaboradores, atualmente 48,13% são negros",
afirma Maria Susana Souza, diretora de recursos humanos da multinacional.

Outras empresas preparam os chefes para lidar melhor
com a questão racial. "Antigamente, a superioridade de uma companhia estava na
informação que ela detinha. No século 21, o conhecimento está amplamente
disponível. Então, o que faz realmente a diferença é ter profissionais com
bagagem e origens distintas, o que amplia a variedade de olhares sobre esses
dados e as possibilidades de utilização", diz Ana Marchi, diretora de recursos
humanos da Monsanto. "Os líderes também têm o seu desempenho medido pelo
incentivo ao desenvolvimento da sua equipe. O treinamento dos gestores frisa que
a inclusão é um dos nossos princípios", completa.

No Itaú, existe um programa destinado a selecionar
jovens talentos negros e prepará-los para construir uma carreira no banco. "É
essencial termos equipes heterogêneas", destaca Ana Paula Nunes de Lima,
superintendente da área de atração e diversidade.

Os estagiários atuam em todos os setores do banco e
participam de módulos educacionais especiais para compensar eventuais
deficiências em relação aos demais funcionários.

Iniciativa semelhante tem o banco Real. "Cerca de 30%
do tempo do estágio é destinado a atividades educacionais que visam enriquecer a
bagagem profissional e acadêmica dos jovens para que eles tenham condições de se
tornarem líderes no futuro", explica Maria Cristina Carvalho, superintendente de
desenvolvimento humano do banco.

Embora tais projetos sejam reconhecidos como
iniciativas importantes e válidas, não são suficientes. "Em todas as nações que
investiram na educação fundamental, a discriminação no mercado de trabalho é
menos acentuada. Temos um potencial de investimento nessa área que outros países
não possuem, e a sociedade, cada vez mais, se dá conta do absurdo. Porém, um dos
desencantos que o atual governo nos trouxe foi justamente a falta de uma boa
política educacional", frisa Cláudio Dedecca, da Unicamp.


JOSÉ MARCOS OLIVEIRA, 45

"O negro
precisa ir além para competir"

DA REPORTAGEM LOCAL

Já havia sido escolhido um candidato de fora da
Nortel para a posição de diretor de canais. Porém, em uma reunião da presidência
na qual se falava sobre a contratação, foram enumerados todos os atributos que a
vaga exigia. Concluiu-se, então, que o profissional que atendia todos os
requisitos fazia parte da empresa havia muito tempo. Era José Marcos Oliveira,
45, então ocupando uma outra diretoria. "Se eu não tivesse continuamente me
aprimorado e persistido, não teria chegado a lugar nenhum."

Da mesma forma que outros negros, Oliveira sentiu em
diversos momentos que, embora fosse tão qualificado quanto seus colegas e
eventuais concorrentes, precisava sempre mostrar um pouco a mais a fim de
convencer sobre a sua capacidade. "O negro precisa ir além para conseguir
competir."

Os pais, feirantes, cobravam dedicação máxima aos
estudos. "Os cinco filhos tínhamos que honrar o sacrifício que eles faziam para
manter a família." Em 1981, o executivo decidiu deixar a faculdade no Brasil e
foi para o Canadá, onde estudou ciências da computação.

Ficou fora por dez anos. "No início, trabalhava
limpando construções para me manter. Certo dia, uma pessoa passou por mim e me
viu assobiando. Comentou: "Puxa, que bacana, você é feliz fazendo faxina". Era,
realmente, porque sabia que aquele era um passo que estava dando para chegar aos
meus reais objetivos." Ao voltar, coordenou as operações na América Latina de
uma pequena empresa que posteriormente foi comprada pela Nortel.

"Olho a situação da educação no Brasil e fico muito
triste. Não adianta nada ter grau de investimento sem pessoas capacitadas,
porque são elas que fazem o pais andar para a frente."

(DG)


LIBER OLIVEIRA RAMOS, 45

"Quero
chegar a presidente de uma empresa; por que não?"

DA REPORTAGEM LOCAL

A exemplo dele, os cinco irmãos de Liber Oliveira
Ramos, 45, diretor administrativo-financeiro do grupo M.Cassab, cursaram uma
faculdade. "Venho de uma família humilde, mas o estudo sempre foi primordial em
casa, levado a sério", diz. "Na minha época, a escola pública tinha qualidade. O
problema com o ensino atualmente atinge todos os pobres."

O executivo, formado em administração de empresas com
MBA em finanças e especialização na Suíça, inglês e espanhol fluentes, tem o
mesmo grau de exigência com as duas filhas pequenas. "A média para aprovação na
escola delas é 6, mas eu estabeleci como nota mínima 7,5. No entanto, não fico
satisfeito com 7,5, tem que estudar para tirar 10", diz.

Ramos afirma nunca ter sentido nenhum tipo de
preconceito em sua vida profissional nem ter enfrentado dificuldades para
ascender pelo fato de ser negro. "A capacidade está muito acima da cor ou da
raça de uma pessoa. Sempre procurei estudar bastante e estar atualizado."

O executivo relata que raramente surgem profissionais
negros pleiteando uma vaga na sua equipe. "Percebo que poucos negros se
candidatam para vagas gerenciais."

Tendo alcançado um cargo com o qual a maior parte da
população negra do país sequer pode sonhar em atingir, nos planos do executivo
estão vôos mais altos. "Quero chegar a presidente de uma companhia. Por que
não?"
(DG)


ARLINDO SANTOS, 44, e PATRÍCIA
LEITE, 32

Sentimento
de inferioridade é o que atrapalha, diz executivo

DA REPORTAGEM LOCAL

A consultora de comunicação da Avon Patrícia Leite,
32, diz saber bem o que é a discriminação velada. "Certa vez, em um emprego
anterior, fui visitar um cliente com o meu chefe. Durante a reunião, ele me
apresentou como responsável pelo atendimento, mas no final vieram perguntar a
ele se eu era a sua secretária", conta. "Em outra ocasião, quando eu usava o
cabelo crespo, uma chefe me pediu para alisá-lo antes de um evento importante,
assim eu ficaria com cara de "menina rica". Mas passei por cima dos episódios
desagradáveis", conta.

Ela afirma que o negro ainda tem um terreno grande
para desbravar. "Acredito no esforço individual."

Arlindo Santos, 44, gerente de vendas da Avon, conta
que, durante muito tempo, o maior preconceito contra ele vinha de si próprio.
"Eu me sentia inferior. Mas consegui ver que as pessoas são todas iguais." Por
isso, ele, que é formado em teologia e filosofia e tem pós-graduação, defende
que os negros deixem a "posição de vítimas do sistema" e entendam que "é de cada
um a responsabilidade pelo seu desenvolvimento pessoal e profissional". "A gente
tem que parar de se achar coitadinho e buscar mais conhecimento, atualização.
Não acredito, tampouco, em manifestações como cortes de cabelo e vestuário para
se destacar. Em vez de ajudar, afastam os outros." Como líder, ele diz que sua
grande realização está em ajudar os funcionários a descobrir o seu potencial.
(DG)


REGINA AGUIAR, 54

"Estudar
foi a minha arma para vencer na carreira"

DA REPORTAGEM LOCAL

Regina Chacarias Aguiar, 54, diz que sempre traçou
metas ousadas para si. Observando o exemplo da mãe, que, solteira, a criou e
pagou uma escola particular para que tivesse boas condições de estudo, começou a
carreira atuando como auxiliar de contabilidade durante o dia enquanto cursava
administração de empresas à noite.

"Minha mãe queria sobretudo que eu tivesse uma
carreira e uma situação melhor", lembra. "Jamais me preocupei pensando se a
minha cor ia me atrapalhar. Só olhava para a frente. Determinação é algo que
todo profissional precisa ter, afinal dificuldades surgem no caminho de negros e
brancos."

Interessada em se aprofundar na área contábil, acabou
fazendo uma segunda faculdade. Depois, duas pós-graduações.

Em 1976, ela entrou para o Grupo Silvio Santos. Foi
galgando postos na empresa até chegar a diretora de recursos humanos, no ano
passado. "Minha primeira promoção ocorreu seis meses após ingressar na
companhia. Em três anos, era chefe de departamento."

Quando começou a lidar com remuneração dos
funcionários, benefícios, contratação e liderança, lá foi a executiva atrás de
cursos. "O conhecimento foi a minha arma para vencer. Ninguém pode se acomodar."

Apesar da trajetória bem-sucedida, a executiva não se
considera um "caso atípico". "Os negros estão conquistando posições de destaque.
Felizmente, cada vez mais conheço colegas no mesmo nível hierárquico. Observo
que, se tiver capacidade, o profissional consegue, sim, subir. Quem não gozou
das mesmas oportunidades dos brancos deve lutar pela sua vida e construir o seu
caminho."

São esses os valores que ela diz que passa para os
três filhos, de 26, 24 e 19 anos, repetindo o que a sua mãe fez.

(DG)


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