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Folha de São Paulo, Cotidiano, DOMINGO, 1 DE SETEMBRO DE 2013

Para analistas, desafio será manter estrutura

DA ENVIADA A
HAVANA

A Faculdade de Medicina Ernesto Che Guevara, em
Pinar del Río, tem de cumprir sua cota de racionamento de energia e pode ficar
horas sem luz. Quem conta é a salvadorenha Brenda Guevara, 24, que acaba de se
tornar médica.

Ela garante que, não fosse pelo governo comunista,
jamais teria se formado.

A história da nova médica ilustra uma das decisões
estratégicas tomadas por Cuba na crise pós-89: manter a enorme estrutura
educativa gratuita, o sistema de saúde e o "pleno" emprego.

No processo de reforma econômica de Raúl Castro, o
governo anunciou, a partir de 2010, que cortaria "gastos irracionais".

Um exemplo são as casas para gestantes de risco,
com capacidade para cinco pacientes e com efetivo de 20 funcionários.

Para analistas como Roberto Veiga, da revista
ligada à Igreja Católica "Espacio Laical", um dos desafios do ajuste de curto e
médio prazo na ilha é discutir o que fazer com os sistemas de saúde e educação.

"A grande maioria dos cubanos não quer ver a saúde
nem a educação transformados em mercadoria, mas em direitos reais."


DOSSIÊ MÉDICOS

Médico cubano
vê Brasil como chance de fazer pé-de-meia


Salário no país será quase 40 vezes superior ao que os profissionais costumam
ganhar por mês em Cuba


Prestes a vir para o Brasil, médica diz que só comprou casa graças ao período em
que atuou na Venezuela

FLÁVIA MARREIRODA ENVIADA ESPECIAL A
HAVANA


"Mãe, o que você acha de Carlos David?", pergunta Laura, 25, com uma barriga
redonda em um vestido florido, a Ana, uma médica de 49 anos que deixará Havana
rumo ao Brasil no dia 10.


"Gosto muito", diz a médica, que diz que o terceiro neto nasce em novembro. "Com
o primeiro foi o mesmo. Eu estava na Venezuela, mas pude vir para o parto. Foi
bom. Agora não sei como vai ser."

Não
só Ana, funcionária de um hospital de Havana, mas também seu marido, em missão
técnica pelo governo de Cuba num país africano, podem perder o nascimento.

A
médica não tem dúvida, no entanto, de que valerá a pena ser um dos 4.000
profissionais recrutados por Cuba para o Mais Médicos.

Ela
diz não saber quanto ganhará no Brasil. Ouviu que serão US$ 1.000 (R$ 2.380) dos
US$ 4.201 (R$ 10 mil) que o governo brasileiro pagará ao cubano por médico, mas
isso não lhe importa.

"Por
pior que seja o país, vale a pena. Sempre o salário vai ser maior do que aqui. E
o que ganhamos vale muito aqui em Cuba. Além do mais, é uma coisa que não é
fácil de entender. Nós somos formados desde pequenos com outra ideia de
medicina, gostamos de servir", diz Ana.

Sem
os sete anos em que ela e o marido passaram na Venezuela, em missão similar a
que cumprirá no Brasil, ela jamais compraria a casa própria subsidiada pelo
Estado no valor de US$ 4.000.

Em
Cuba, há duas moedas vigentes. O peso cubano, da maioria dos salários e de
alguns produtos básicos, e o CUC, equivalente ao dólar, que compra tudo o mais.

A
médica, com mestrado em emergências médicas e professora, ganha algo como US$ 26
mensais –ou R$ 62.


META DE VIDA

O
único nome real do relato acima é o do bebê. Ana, seus familiares e os demais
profissionais de saúde cubanos ouvidos pela Folha em Havana mantêm o
anonimato por não estarem autorizados a falar com a imprensa.

Em
muitas das histórias, a conclusão de Ana se repetiu. Enquanto ao chegar ao
Brasil profissionais cubanos foram chamados de "escravos" nesta semana, viajar
ao exterior como funcionário do governo, mesmo sob restrições, é algo disputado.

No
caso dos médicos, pode ser a oportunidade de fugir de salários irrisórios e de
dois ou três bicos. Mais importante: pode ser a chance de obter o dinheiro que
não conseguiriam a vida toda.


"Todos os cinco que trabalham comigo têm outros trabalhos. Um vende perfume, o
outro é carpinteiro, outra aluga equipamento de som e outro é taxista. Eu, que
estudei para ter meu dinheiro e ser independente, vivo do meu marido, que tem
curso técnico", explica a pediatra Consuelo, 43, que tenta se inscrever de
maneira independente no Mais Médicos.


Consuelo conta que as ferramentas do médico-carpinteiro e o equipamento de som
do colega empreendedor foram conquistas dos dois após voltarem da missão na
Venezuela, onde, como Ana, ganhavam US$ 200 (R$ 476).

A
família em Cuba recebia até US$ 100 (R$ 238) mensais. Todos ganham ainda um
cartão que dá 30% de desconto nas lojas dolarizadas.

Para
Roberto Veiga, editor da influente revista cubana ligada à igreja "Espacio
Laical", é razoável que o governo cubano cobre um "imposto" dos médicos que leva
para trabalhar no estrangeiro.

E o
governo conseguiria esse recrutamento se o salário em Cuba fosse maior?

"Os
baixos salários são a expressão-chave da crise econômica. Mas, ainda que
houvesse em Cuba a possibilidade de um salário digno, creio que a superpopulação
de médicos faria a possibilidade de trabalho no exterior atrativa, talvez de
outra maneira", diz.


Pavel Vidal Alejandro, economista cubano que atua em universidade da Colômbia,
diz que para explicar o fenômeno inteiro é preciso voltar à queda da URSS,
quando a ilha comunista perdeu seu aliado político e econômico. Os salários são
hoje 70% do que eram em 1989 e os preços se multiplicaram por oito.


verdade que os médicos cubanos vão receber no Brasil bem mais do que recebem em
Cuba. Mas também é verdade que o Estado também vai receber bem mais alto
rendimento. A empresa estatal tem um modelo de rentabilidade de negócio baseado
em baixíssimos salários. O que está ocorrendo é uma extensão desse modelo,
levado à Venezuela, ao Brasil."

Missões no exterior elevaram status da carreira

DA ENVIADA A HAVANA

Nos
anos 90, ocorreu uma mutação em Cuba. A despeito do acesso universal à carreira
universitária, as profissões foram divididas em duas categorias básicas: as que
poderiam gerar rendimentos em dólares e as que não podiam.

Os
médicos, elite do Estado e ponta de lança da diplomacia comunista, ficaram no
lado mau da balança, com salários irrisórios e proibidos de buscar emprego no
único oásis da crise: o turismo.

Os
anos 2000, e o convênio estratégico de Cuba com a Venezuela, que levaria 30 mil
profissionais de saúde por ano, mudou o quadro e melhorou o status da profissão.


Agora, cursar medicina pode ser também o começo de uma trajetória que terminará
em uma missão externa.

O
incentivo é uma ajuda no esforço do governo para garantir o preenchimento das
vagas abertas em medicina nas 13 universidades médicas espalhadas pelo país, 25
faculdades de medicina, 4 de odontologia e 4 faculdades de enfermagem.


Segundo o governo, 47.676 estudantes de medicina começarão o ano letivo amanhã e
10.374 estrangeiros –a maioria deles selecionado por parceiros políticos, como
PT e PC do B no Brasil e FMLN, de El Salvador.


Ainda assim, chegam a sobrar vagas de medicina. Pelo menos é o que diz a cubana
Ana (nome fictício), selecionada para o Mais Médicos, que é docente. Ela diz
que, ao contrário da sua época, agora alunos que não conseguiram entrar em
outras carreiras acabam em medicina.

A
médica de 49 anos rebate às críticas de que a produção em massa de médicos
debilita a formação.

Para
a pesquisadora americana Julie Feinsilver, autora de estudos como "Fifty Years
of Cuba”s Medical Diplomacy: From Idealism to Pragmatism" (50 anos de Diplomacia
Médica: do Idealismo ao Pragmatismo), a flexibilidade do sistema de saúde e sua
revisão constante são um dos trunfos locais.

Com
a crise dos anos 90, a atenção primária foi ainda mais focada na prevenção de
doenças e na análise territorial e comunitária dos fatores de riscos de saúde,
um princípio básico do ensino local.


"Esse tipo de abordagem ampla é precisamente o que melhor funciona nas
comunidades que os cubanos devem atender no Brasil, muito mais do que um modelo
mais clínico e curativo. Claro que os cubanos também são treinados para isso,
mas a ênfase é mais atenção primária do que medicina de ponta".

Não há trabalho escravo, afirma Padilha


Ministro da Saúde diz que abertura de investigação do Ministério Público do
Trabalho sobre o programa é “positiva”


Para Padilha, parte das reações ao programa tem conteúdo partidário e
preconceituoso

FLÁVIA FOREQUEJOHANNA NUBLATDE BRASÍLIA

À
frente do Ministério da Saúde há dois anos e meio, Alexandre Padilha enfrenta a
mais difícil missão na busca de uma marca para a pasta: implantar o Mais
Médicos.

A
iniciativa foi oficializada na esteira dos protestos de rua e em meio a
conversas sobre sua saída do Executivo para disputar o governo de São Paulo pelo
PT –articulações que ele nega.


Médicos e congressistas reagiram à proposta de trazer médicos sem revalidação de
diploma para atuar em unidades de atenção básica.

Além
de buscarem resposta na Justiça, não deixaram de alfinetar o ministro, sugerindo
até mesmo a cassação de seu registro profissional –formado na Unicamp, Padilha
é infectologista.


Como o sr. avalia essa semana, com a chegada dos médicos estrangeiros ao país e
o inquérito aberto pelo Ministério Público do Trabalho no Distrito Federal?


Alexandre Padilha – Foram duas grandes concentrações de esforços. Primeiro, o
acompanhamento da avaliação dos médicos estrangeiros, que está sendo positiva. A
segunda questão era garantir, na Justiça, o registro dos profissionais. Todas as
ações contrárias foram derrotadas. É importante e positiva a entrada do
Ministério Público do Trabalho para não permitir a banalização do termo
"trabalho escravo". Não existe qualquer tipo de paralelo com trabalho escravo
[no programa].


Por que o Brasil à essa falta de médicos no interior do país e nas periferias
das capitais?

Nos
25 anos do SUS, nunca o Brasil planejou quantos médicos queria ter, como
distribuir os profissionais.

O
SUS tem quatro grandes desafios hoje: financiamento; gestão; ter uma base
produtiva de insumos, vacinas e equipamentos e oferta de profissionais com
qualidade. O médico é o principal nó hoje, por ser o mais valorizado, que demora
mais para se formar, mais especializado e decisivo. Não se faz saúde sem médico.

A
vinda dos médicos do exterior aliada à verba prevista para a reestruturação das
unidades básicas vão levar a atenção básica à perfeição?

O
Mais Médicos tem medidas de curto prazo, porque tem 701 municípios brasileiros
para onde nenhum médico quis ir, e tem medidas de médio prazo, para ampliação
das faculdades de medicina, residências e mudanças na formação do profissional.

A
gente não quer só quantidade, quer um profissional com contato maior com a
atenção básica. Não podemos ficar parados diante de uma mentalidade de que saúde
só se faz dentro do hospital, de que, para cuidar de uma pessoa, é preciso ter
um aparelho entre o médico e a pessoa. O Brasil, cada vez mais, vai estar
submetido às doenças crônicas, que exigem que o médico conheça a realidade de
vida da pessoa.

O
sr. lista só consequências positivas com o programa. Por que, então, entidades
médicas são tão incisivas contra ele?


manifestações legítimas e temos buscado dialogar. Algumas reações são mais que
corporativismo, são incitação à xenofobia, ao preconceito, colocam em ameaça a
saúde da população.


outras manifestações que trazem um conteúdo partidário-ideológico que não tem
que ser trazido para o tema da saúde. Estou tranquilo quanto a isso, porque foi
num governo federal do PSDB que se fizeram vários convênios para trazer médicos
cubanos.


Ao permitir que o médico cubano ganhe menos que os demais, o governo não está
sendo preconceituoso?

São
situações diferentes. O médico estrangeiro que se inscreveu individualmente não
tem emprego garantido depois que sair daqui. O médico cubano tem um emprego
estável, um vínculo permanente com o ministério [da Saúde de Cuba]. Participar
de missões externas humanitárias como essa significa um bônus salarial para ele.


Não é questionável que Cuba tenha um retorno financeiro pela oferta de médicos?


Vários países fazem convênios para sustentar suas políticas. No caso de Cuba,
isso ajuda a manter suas políticas de saúde, a formar médicos que já serviram a
mais de 70 países. Se esse recurso, além de garantir o atendimento da população
brasileira, vai ajudar a manter a formação de médicos com a qualidade para
atender vários países, isso é uma parceria mais valorosa que outras que servem
para vender armas, minérios.

E
temos relações com Cuba antes disso. [O país] nos ajudou a implantar a atenção
básica, estamos recebendo transferência de tecnologia deles para 19 produtos
estratégicos para o SUS.


Como o sr. responde às críticas de que o Mais Médicos atende a fins eleitorais?

Esse
programa surgiu de uma demanda de prefeitos de todos os partidos. Recebeu apoio
de governadores de todos os partidos. Só esse fato desmonta qualquer tese de que
é um programa eleitoreiro. Os únicos votos que eu estou caçando hoje são os de
deputados e senadores para aprovar a medida provisória [que cria o Mais
Médicos].

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