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Portal Aprendiz – 01/10/2012 – São Paulo, SP

 “Quero estudar”, diz empregada doméstica desde os 14 anos

Por Ana Aranha, de Apublica

Iara*, 18 anos, e Cenira
Sarmento, 66, viveram experiências parecidas quando adolescentes. Elas não
tiveram o luxo de levar bronca dos pais pela bagunça do quarto, como acontece
com as meninas dessa idade. Aos 14 anos, eram elas que arrumavam a bagunça dos
outros. Apesar da diferença de gerações, as duas tiveram a mesma sina: foram
enviadas por seus pais para trabalhar como empregadas domésticas em Belém como
continua a acontecer com muitas meninas do interior do Pará.

Iara tinha 14 anos quando
deixou a casa da família em Viseu (305 quilômetros da capital). Cenira tinha 10
quando saiu de São Caetano de Odivelas (110 quilômetros de Belém). Embaladas
pela expectativa de um futuro melhor graças aos estudos na capital,
desembarcaram assustadas na cidade onde não conheciam ninguém. Foram direto para
a casa onde trabalhariam, morariam e aprenderiam lições mais duras do que a
rotina diária de limpar a casa, lavar a roupa, fazer o almoço, lustrar a prata.

O primeiro ensinamento foi
sobre disciplina rígida. Iara não gosta de lembrar dos gritos que a humilhavam
quando esquecia de limpar um canto da casa. Cenira levava cascudos, quando
errava o lugar da louça.

Nas tardes em que Iara
insistia em ir à escola, a patroa ralhava e cinicamente ameaçava chamar o
conselho tutelar. “Trabalho infantil é crime, tu quer prejudicar seus pais?”. A
menina se calava. Como ela, que não tinha nem documento de identidade, poderia
argumentar sobre a interpretação das leis? E assim recebia o segundo
ensinamento: a submissão.

Lição que era reforçada no
cotidiano, até nos “conselhos” que recebia dos patrões. Iara ganhava 100 reais
mensais para trabalhar das 6 horas da manhã até a meia noite, de segunda a
domingo. Quando falava sobre o desejo de cursar uma faculdade, ouvia da patroa:
“Para com isso, menina, pobre tem que se conformar com o seu lugar”.

Cenira, que cresceu em um
tempo ainda mais duro com as trabalhadoras domésticas, também recebia aulas
diárias sobre o “seu lugar”. Dos 10 aos 15 anos, comia os restos da comida da
família, vestia-se com as roupas usadas pelas crianças de quem cuidava e dormia
em um quartinho no fundo do quintal. Esse era o seu pagamento pelo trabalho
diário.

Mas ela não reclama da sorte:
“Sei que fui lambaia [escrava], eu tirava sangue pra fazer tudo naquela casa,
cansei de lavar vaso sanitário com as mãos. Mas aprendi o serviço, depois tive
orgulho de virar arrimo da minha família”. E conclui com a voz firme da
convicção: “Eu acho um absurdo essa lei que criança não pode trabalhar.
Trabalhar é bom, não mata ninguém”.

Seu jeito de pensar reflete a
opinião de grande parte da população paraense, para quem trabalhar cedo pode ser
uma parte importante da formação. E ajuda a explicar porque Iara e Cenira, que
nasceram com quase 40 anos de distância, viveram experiências ainda bastante
parecidas.

Mas há ao menos uma diferença
fundamental entre as duas trajetórias, que pode determinar destinos distintos
para as duas.

Cenira só começou a estudar
aos 38 anos, quando sua filha também já trabalhava como doméstica. Já Iara,
apesar das proibições da patroa, sempre esteve matriculada na escola. Mesmo com
mais faltas do que presenças, no contato com colegas e professores ela descobriu
que poderia escolher uma profissão diferente daquela que a aprisionava.

Por isso tem planos para o
futuro, por enquanto sonhos, que revelam como conseguiu subverter as lições da
patroa: “Vou cursar faculdade de direito. Quero ser advogada para dar conforto
aos meus pais, pagar a faculdade dos meus irmãos e defender as crianças que são
exploradas por adultos, como eu fui”, diz.

Grades invisíveis

A escola é um dos poucos
espaços onde as meninas que trabalham como empregadas domésticas se relacionam
com pessoas fora do círculo dos empregadores. Mas, mesmo lá, há barreiras que as
isolam do convívio social. Com receio do preconceito que ronda a profissão, além
do estigma de ser do interior, muitas evitam contato com os colegas.

Nos primeiros anos em Belém,
Iara ficava na sala durante o recreio. Não “dava confiança” a ninguém. Hoje,
quatro anos depois, ela só se abre com as colegas que vivem ou já viveram a
mesma situação. “Eu não falo porque as pessoas não vão dar jeito nos meus
problemas”, diz.

A invisibilidade foi o maior
entrave encontrado por Maria Luiza Nobre Lamarão, professora e pesquisadora de
ciências sociais na Universidade Federal do Pará e uma das maiores especialistas
em trabalho infantil doméstico no país, quando começou a pesquisar o tema. As
meninas com esse perfil negavam sua condição. “Diziam que não tinham patroa, que
moravam na casa da tia e ajudavam com as crianças”, conta Maria Luiza.

Depois de muitas entrevistas,
ela conseguiu levantar um detalhado perfil de 16 meninas na mesma condição que
Iara. A maior parte delas era do interior e foi para Belém entre 10 e 14 anos.
Sem contato com a família ou amigos, criaram laços confusos com os patrões, que
misturavam o papel de chefe com o de pai e mãe – com quem quase não têm contato.

Iara só fala com sua família
uma vez por ano, quando os visita. Ou muito raramente, quando a mãe viaja à
cidade mais próxima do lugar onde vivem. Por isso mesmo depois de ouvir a patroa
desdenhar de seus sonhos, era a ela que recorria quando precisava de conselhos.
“Ela (a patroa) dizia que queria me ajudar, que falava aquilo porque gostava de
mim. Eu acreditava”, lembra.

Para Maria Luiza, os
empregadores buscam se beneficiar dessa mistura de papéis quando escolhem
meninas nessa faixa etária. “Eles pegam a menina para criar”, afirma. “Não pode
ser muito pequenininha, que aí não dá conta do trabalho; mas raramente elas são
maiores, quando a socialização já está sedimentada”.

Essa “formação” prejudica o
desenvolvimento da autoestima dessas meninas, que só recebem incentivos para
cumprir tarefas domésticas, além dos abusos a que estão sujeitas. Como aconteceu
com Iara, muitas são humilhadas, privadas de frequentar a escola regularmente e
desestimuladas a desenvolver outras habilidades.

Hoje, trabalhando em outra
casa, Iara tem condições de compreender melhor o que passou. “Ela (a patroa) não
queria que eu saísse dali. Eu me sentia sufocada, presa, não podia conversar com
ninguém. Era só trabalho, muito trabalho. Mas eu achava que ia mudar”. Além de
cuidar da casa, a menina tinha que limpar a loja de roupas da família e, no fim
do dia, dobrar e guardar as peças reviradas pelas clientes.

Iara diz que na nova casa o
serviço diminuiu e que ela é estimulada a frequentar a escola. Mesmo assim, há
noites em que chega na aula exausta. Uma de suas colegas, que também trabalhou
como doméstica e hoje está no caixa de uma papelaria, percebe as olheiras da
amiga e lhe dá conselhos para buscar outro emprego. Mas Iara não se sente
confiante. “Primeiro tenho que terminar a escola, fazer cursos, quem vai querer
me contratar assim?”.

Sem fiscalização nem
assistência às vítimas

O trabalho infantil doméstico
é o mais difícil de combater. São poucos os mecanismos de fiscalização. “Sabemos
do isolamento psicológico, submissão, que tem criança que acaba escravizada. Mas
não podemos fiscalizar porque somos vedados de entrar nas residências”, afirma
Deise Mácola, coordenadora da fiscalização do trabalho infantil na
Superintendência Regional do Trabalho e Emprego no Pará.

As poucas denúncias sobre
trabalho infantil doméstico recebidas por Deise são encaminhadas ao Ministério
Público do Trabalho, que tem autorização para entrar nas casas. Segundo o
procurador Rafael Marques, que coordena essas fiscalizações, as famílias
flagradas reagem sempre com surpresa. “Eles se assustam, entendem que estavam
fazendo um bem por dar teto e comida à criança”, afirma. Nas entrevistas com as
vítimas, porém, o procurador ouve relatos de humilhação, isolamento, violência e
até assédio sexual.

A família flagrada por
explorar trabalho infantil é obrigada a levar a criança de volta para a sua
casa. Mas não há uma punição. A lei estabelece sanções para empresas, mas não
para pessoas físicas.

“Essa questão está adormecida
dentro das políticas públicas na nossa região. Há uma tolerância enorme em
relação às crianças que trabalham”, diz Roseane Costa de Souza, diretora da
divisão de Assistência Social dentro da Secretaria Estadual de Assistência
Social do Pará.

Enquanto os números do
trabalho infantil caem em todo o país, na região norte, e especialmente no Pará,
o problema cresce. Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
(PNAD), a região foi a única a registrar aumento no percentual de crianças e
adolescentes trabalhando entre 2009 e 2011. Todas as outras tiveram queda.

A comparação entre o Censo
2010 e 2000 é preocupante. O Pará teve o segundo maior aumento na quantidade de
pessoas de 10 a 13 anos engajadas em atividades econômicas do país. Em uma
década, o estado registrou um acréscimo de 12 mil crianças e adolescentes no
mercado, um crescimento de 28% em relação a 2000.

A maior dificuldade no
combate ao trabalho infantil no Pará é a barreira cultural, acredita Sueli
Mendonça, coordenadora Fórum de Erradicação do Trabalho Infantil no estado.
“Sempre que colocamos o tema em reuniões ou palestras, as pessoas têm uma reação
contra muito forte, elas contam com orgulho sobre como trabalharam desde cedo e
conseguiram progredir”, afirma. É difícil quebrar o ciclo.

As meninas que trabalham como
domésticas também são as que menos recebem benefícios de políticas de
assistência social.

O primeiro entrave são as
distâncias. Em pesquisa feita em Belém sobre os locais de origem das meninas que
trabalham como domésticas, o Centro de Defesa da Criança e do Adolescente Emaús
identificou três cidades, duas na Ilha de Marajó. Na segunda etapa do projeto,
as escolas dessas cidades receberiam cursos de prevenção e os próprios alunos
montariam peças de teatro sobre trabalho infantil. Mas uma das cidades
identificadas na ilha, Breves, fica a 12 horas de barco de Belém. Devido à
distância, o centro teve de escolher outro município para receber o projeto.

A prevenção no interior é
fundamental porque, em geral, essas meninas já trabalhavam em casa antes na
mudança: na roça, no beneficiamento da farinha de mandioca e, principalmente, na
colheita do açaí. Como a palmeira do açaí é fina e alta, os adultos podem tombar
a árvore quando sobem. Por isso, as crianças de sete a doze anos são chamadas
para subir na árvore e colher o cacho.

“Elas sobem com a faca
enfiada na cintura, tem muitos acidentes”, afirma Luiz Carlos Figueiredo,
gerente do Centro de Referência Especializada que monitora esses casos dentro da
secretaria de assistência social. Ele ressalta que, durante o atendimento, os
hospitais não registram que o acidente foi fruto de trabalho infantil. Assim, as
crianças voltam a trabalhar mesmo depois do acidente.

Iara era tão pequena que nem
lembra quando começou a colher açaí. No fim do dia na casa dos pais, vencia
quilômetros com as latas da fruta na cabeça e ia dormir com dor nas costas. “Eu
achava que ia ficar velha rápido trabalhando assim, com sol ou com chuva, isso
acaba com a gente”, ela lembra.

A menina trabalhava sempre
que não estava na escola, e essas ocasiões estavam se tornando cada vez mais
frequentes nos anos antes da mudança para Belém. “Lá é interior do interior, os
professores davam aula um mês e depois ficavam vários sem aparecer”, ela lembra.
Aos 13 anos, Iara ainda não sabia ler.

Na região norte, um dos
maiores catalizadores do trabalho infantil é a deficiência da rede pública de
educação, principalmente no interior e comunidades ribeirinhas. Essa é uma das
interpretações de Renato Mendes, coordenador do programa de combate ao trabalho
infantil da Organização Internacional do Trabalho (OIT). “Até a década de 90 e
começo dos anos 2000, a pobreza era a causa fundamental. Com a melhoria do
acesso à renda, percebemos a falta de acesso e a baixa qualidade da educação
como os novos determinantes para o trabalho infantil”, afirma.

Iara diz que a busca pelos
estudos foi o único fator que a fez deixar a casa dos pais. “Foi a professorinha
mesmo que deu a ideia pro papai, porque ela viu que eu queria aprender”, lembra.

Quando saiu de casa, todos os
vizinhos já tinham mandado pelo menos um filho para a capital “para estudar e
trabalhar”. “Trabalhar porque as pessoas não vão receber ninguém de graça, né?
Mas eu vim mesmo pra estudar”.

No final do dia de trabalho,
a escola

Como ela, a maior parte das
crianças e adolescentes que trabalham estão na escola. Dos 704 mil trabalhadores
de 5 a 13 anos no país, 97% estudavam em 2011, segundo o Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE).

Mas o que significa “estar na
escola” para eles?

Hoje Iara trabalha das 6
horas da manhã até às 7 da noite, hora de ir para a aula. Ela entra na sala tão
cansada que senta num canto e não levanta “nem para tomar água”. No intervalo,
faz a lição de casa.

As contas são as que mais lhe
dão dor de cabeça. “Matemática já é difícil pra todo mundo, eu cansada não
consigo raciocinar”, ela justifica. E lembra de uma noite que passou em claro,
no primeiro ano em Belém, para tentar recuperar o conteúdo perdido.

Cursando a 3a série, suas
notas em matemática variavam entre 2 e 3. “Eu expliquei minha situação pro
professor e ele mandou juntar todas as provas e resolver em casa. Se eu
conseguisse terminar, valia como nota final”. Depois que a patroa foi dormir,
Iara pegou o material e passou a madrugada batalhando para resolver as questões.
“Fiz tudinho. Na hora que fui deitar, o dia amanheceu”.

Iara conseguiu a nota de
matemática, mas mesmo assim repetiu de ano, devido às faltas. Aos 15, teve que
refazer a 3a série.

A repetência é ponto comum na
trajetória de meninas que trabalham como domésticas, diz a especialista em
trabalho infantil Maria Luiza Nobre Lamarão. “Isso acontece muito na 3a série,
elas engatam e não conseguem avançar dessa etapa”, afirma.

Iara é persistente. “As vezes
dá um desespero, vontade de jogar tudo pro alto. Aí eu rezo pra Deus me dar
coragem pra continuar os estudos”.

Mas nem todos os adolescentes
são tão abnegados.

“Por quanto tempo a menina ou
menino de 16 anos que trabalha vai aceitar conviver com uma turma de 12 anos?
Ele começa a desvincular a escola do projeto de vida, que faz mais sentido pelo
trabalho”, diz Maria de Salete Silva, pesquisadora do Fundo das Nações Unidas
para a Infância (Unicef) e coordenadora de estudo sobre a permanência na escola.

O efeito imediato do trabalho
e excesso de repetências é o abandono da escola, tanto é que a a região norte
também é campeã de evasão escolar. O Pará tem o segundo pior índice da região.

Para reverter esse processo,
as escolas de Belém estão tentando ser mais flexíveis com os alunos que
trabalham. “Se for seguir o cronograma e cobrar frequência, eles percebem que
não vão conseguir passar e desistem”, diz Edson Moura, o professor de matemática
de Iara.

Outra frente visa diminuir o
atraso escolar. Para colocar os adolescentes na série que corresponde à sua
idade, as escolas estão transferindo os alunos para a Educação de jovens e
Adultos (EJA) – turmas tipo supletivo que condensam duas séries em um ano. Em
Belém, quem tem mais de 15 anos e está ao menos 2 anos atrasado é transferido
para essa modalidade, que só acontece à noite.

Embora resolva o problema do
fluxo (excesso de alunos na série errada) a transferência pode trazer problemas
para os adolescentes, que passam a assistir aula planejadas para adultos. “Temos
um número crescente de jovens no EJA e isso gera um conflito de gerações”,
observa Celso Oliveira, assessor pedagógico da secretaria municipal para essa
modalidade. “Os jovens vêm do ensino regular com muita energia, é difícil
prender sua atenção. Já os adultos estão há 20 anos sem estudar, têm outro
ritmo”.

Iara caiu nessa rede. Até o
ano passado, estudava à tarde no ensino regular. Ao concluir a 5a série com 17
anos, foi transferida para uma turma de jovens e adultos à noite. Ela teve que
refazer a 5a série no começo do ano, e agora está cursando a 6a série no segundo
semestre.

Para Maria de Salete, do
Unicef, a escola precisa aprender a lidar melhor com esses casos. “Ou os meninos
ficam repetindo e são tratados como criança grande ou vão para o EJA e são
tratados como adulto pequeno”, afirma. “Eles são adolescentes, têm direito de
serem atendidos como tal”.

Mas o que, então, a escola
deveria fazer com esses alunos?

Mudar o Bolsa Família?

Uma das principais
ferramentas para manter os alunos na escola são os programas de transferência de
renda, como o Bolsa Família. Para Sueli Mendonça, que além de ser coordenadora
do Fórum de Erradicação do Trabalho Infantil também é professora de escola
pública, é preciso avançar nas condicionalidades desses programas (as exigências
que tem de ser cumpridas para ter direito ao benefício) para que os alunos parem
de trabalhar e melhorem o rendimento escolar. Hoje as condições estipuladas são
manter a carteira de vacinação em ordem e os filhos na escola.

Ela defende que as escolas
identifiquem os alunos que recebem o Bolsa Família (o que quase não acontece
hoje), chamem as famílias dos alunos que trabalham para reuniões sobre os danos
que isso traz para o desenvolvimento da criança. No limite, as escolas devem
avisar que eles podem perder o beneficio se a criança continuar trabalhando,
acredita Sueli.

Mas aumentar o rigor tem seus
riscos. Segundo Iacirema Bahia Cardoso, técnica da Funpapa, a fundação municipal
responsável pelo monitoramento e assistência de população de rua em Belém, a
maior parte das crianças que trabalham na rua recebem Bolsa Família. Mas, quando
os técnicos procuram as famílias e dizem que elas não podem trabalhar, os pais
dizem que preferem suspender o programa. “Os meninos ganham muito mais
trabalhando do que pelo Bolsa Família”, diz Iacirema.

Em busca dos alunos

Uma segunda solução apontada
por Sueli seria um acompanhamento caso a caso na escola. “Hoje o trabalho
infantil é algo naturalizado pelos educadores, todos sabem que os alunos
trabalham e nada é feito”, afirma.

Ela lembra de um episódio na
sua escola, quando uma tia chegou dizendo que sua sobrinha havia fugido de casa.
Sueli localizou uma parente da aluna na cidade e descobriu que a “tia” era, na
verdade, patroa. E que a menina fugiu da casa onde morava e trabalhava como
doméstica porque não aguentava mais a grande quantidade de serviço que era
obrigada a fazer.

“Chamei a mulher para uma
reunião e levei o Estatuto da Criança e do Adolescente. Apontei tudo que ela
tinha feito de errado e disse que tinha de levar a meninas de volta pra casa da
família dela”. A patroa pagou a passagem para a adolescente, que morava na Ilha
de Marajó.

Mas será que todas as escolas
e educadores são capazes de acompanhar seus alunos com tanto cuidado?

“Não sabemos o que fazer. São
tantos os problemas, que nos sentimos incapazes.”, diz Ioleta Gomes Orquiza,
vice-diretora de um colégio de Marabá que perdeu 30% dos alunos em 2011.

Ioleta e sua equipe veem os
alunos trabalhando em feiras como ambulantes. “Entre as meninas é ainda pior, há
muita prostituição”. A escola fica em um dos bairros mais pobres da cidade, que
tem 233 mil habitantes

A solução encontrada pela
direção foi enviar cartas às famílias convocando-as para uma reunião.
“Escrevemos que, se os pais não tomassem providências sobre o abandono, nós
tomaríamos as nossas”, afirma. Mesmo assim, foram poucos as famílias que
compareceram na reunião. “Ainda estamos tentando levá-los de volta. Se não
acontecer, vamos encaminhar os nomes para o Ministério Público”.

Não só os alunos, mas toda a
população de Marabá sofre com a violência e aumento das redes de exploração
sexual. Polo da indústria siderúrgica, a cidade atrai contingente populacional
incompatível com sua estrutura.

Quando contrastada com os
impactos dos problemas políticos e sociais do estado, a escola fica pequena.
Para cenários assim, cresce a percepção entre os especialistas em política
educacional que a melhor alternativa para a escola é crescer e ocupar mais
espaço na vida dos alunos.

Escola em período integral
traz bons resultados em Moju

É o que tenta fazer uma
secretária municipal de educação a 260 quilômetros de Belém. Moju, cidade de 70
mil habitantes, também sentiu o impacto dos projetos federais no estado. Lá,
empresas foram incentivadas a instalar fábricas para processar o óleo de dendê,
atraindo famílias em busca de trabalho. Além disso, pequenos proprietários da
zona rural venderam suas terras para fazendeiros interessados em produzir em
maior escala, o que inchou ainda mais a periferia da cidade.

“O problema começou a ser
visto a olhos nus: muitas crianças na rua vendendo e pedindo, adolescentes nos
bares e voltando das carvoarias”, diz a secretária de educação Sandra Helena
Ataíde. Dentro das escolas, estouravam os índices de repetência, abandono e
atraso.

Para tentar reverter o
processo, a prefeitura investiu na construção de uma escola em tempo integral
destinada aos alunos em vulnerabilidade. Pela manhã, o Centro Municipal de
Educação Integral Oton Gomes de Lima oferece aulas regulares da 5a à 8a série
para 150 alunos, enquanto os outros 150 participam de atividades esportivas e
culturais, como capoeira, música, teatro, natação e esportes. Depois do almoço,
as turmas invertem. Das 7 horas da manhã até às 17 horas da tarde há professores
disponíveis para tirar dúvidas ou ajudar na lição de casa.

Para formar as primeiras
turmas, em 2009, houve uma triagem em todas as escolas da cidade em busca do
público alvo: alunos que trabalhavam, sofriam violência em casa, estavam
envolvidos com o tráfico ou outras situações de risco. Em geral, aqueles que
mais acumulavam repetência e notas baixas.

“Eu quis desistir no primeiro
dia”, Sandra confessa. Uma escola especial para alunos vulneráveis fazia todo
sentido na teoria. Na prática, virou um caldeirão explosivo. “Eles brigavam por
qualquer motivo”, lembra a diretora Laurimary Mendonça. “Se esmurravam na fila
do lanche, davam soco só porque um olhou pro outro, faziam guerra de açaí. Teve
um dia em que registramos 46 ocorrências de brigas e discussões”.

Ao invés de virar uma boa
referência na cidade, a escola era o lugar onde os pais não queriam matricular
seus filhos. “Diziam que era um centro para menores infratores”, diz Laurimary.

Com o tempo, a escola foi
aprendendo que concentrar todos os perfis com problemas não seria sustentável e
passou a abrir matrículas para todos os interessados. Hoje, segundo os próprios
alunos, a vaga naquela escola é o sonho de muitos adolescentes da cidade.

Não é fácil reproduzir a
experiência. A diretora calcula que cada aluno do Oton deve custar cerca de
cinco vezes o valor das outras escolas da cidade. “Uma escola ainda é pouco, mas
a gente precisava começar, para a sociedade assimilar que é possível”, diz a
secretária.

Hoje, percorrendo as salas de
aulas, não é difícil achar alunos que ainda trabalham. A maior parte, porém,
deixou o serviço na semana e faz bicos aos sábados e domingos.

É o caso de Raimunda*, 17
anos. Ela saiu da casa da mãe na zona rural com 12 anos para trabalhar como
doméstica na cidade. Foi quando descobriu que teria de voltar a cursar a 1a
série, pois ainda não sabia ler e escrever. Atrasada na escola e cansada do
trabalho, foi escolhida para estudar no Oton.

Como Iara, ela sempre foi
dedicada aos estudos, mas tinha dificuldade para progredir. Hoje seu esforço é
bem melhor aproveitado. Nas últimas provas Raimunda tirou dez em todas as
matérias, menos geografia e artes, que ficou com 8 e 8,5.

Nos finais de semana, ela
ainda faz bicos como recepcionista em uma churrascaria para ter o seu dinheiro.
Mas só depois do final das aulas do curso profissionalizante em administração
dado por uma das empresas de biodiesel da cidade. “Eles querem profissionalizar
os jovens pra trabalhar lá, eu aproveito, é uma chance de um emprego melhor
quando terminar os estudos”.

Andando pela escola, Raimunda
transborda autoconfiança. “Não sei explicar por que, mas eu me sinto bem aqui”,
diz. Esse ano ela passou na primeira fase da Olimpíada de Matemática. “Eu gosto
que posso contar com os professores quando tenho dificuldade. E que posso levar
os livrinhos de contos da biblioteca pro meu pai. Ele pede pra me ouvir lendo,
acho que tem orgulho”.

* Os nomes foram trocados
para preservar a identidade das adolescentes


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