Revista Veja, Edição 1981
As crendices do vestibular
"O vestibular é um dos maiores
focos de crendices e antipatias, por ser um ícone da meritocracia,
tão avessa aos gostos tupiniquins"
Claudio de Moura Castro
"Vou acabar com o vestibular!" Quantos ministros da
Educação prometeram isso ao tomar posse? Tolice. Pode mudar de nome, mas, se há
mais candidatos do que vagas, é preciso uma prova para
garantir que os melhores sejam escolhidos. No caso dos cursos concorridos,
menos entram, mais cobiçados ficam. Em contraste, já há muitos cursos
superiores com menos candidatos do que vagas. Aliás, nada errado com isso. Só
que neles o vestibular é mera liturgia (exceto por permitir às faculdades
conhecer melhor seus alunos). O vestibular é um dos
maiores focos de crendices e antipatias, por ser um ícone da meritocracia, tão avessa aos gostos tupiniquins. Vejamos
outras.
"Coitadinho, tem de estudar tanto!" Em todos os
países sérios, o ingresso nas melhores universidades é brutalmente competitivo,
bem mais do que no Brasil. Pesquisas no último ano do ensino médio, em escolas
privadas, mostraram pouco mais de uma hora de estudo diário depois da aula.
"O vestibular é uma loteria!" Podem-se acertar algumas questões por
acaso. Mas, sem saber, não se acertam muitas. Aliás, o acerto por sorte é igual
para todos. Portanto, passa quem sabe mais respostas certas. Só passa por sorte
quem está concorrendo com outros candidatos que tampouco sabem as respostas
certas, e isso só acontece nos cursos menos cobiçados. Apenas nesses casos vale
a tese de que passa o ignorante sortudo. "É
absurdo decidir tudo em uma só prova!" Pesquisas mostram que as notas
refletem o que sabe o aluno. Elas quase não variam em virtude da inspiração do
momento ou da mosca que distraiu sua atenção. Além disso, as provas predizem
bem o desempenho na faculdade. Nosso sistema não é diferente dos exames de fim
de secundário na Europa. Lá, provas parecidas aos nossos vestibulares
determinam quem entra em qual universidade (e quem nem sequer terá diploma de
secundário).
"É pura decoreba!" Já foi
verdade. Hoje, nas melhores universidades, o exame mede muito mais raciocínio
do que memória. Aliás, uma pesquisa na USP mostrou que, se fosse trocado o
vestibular pelo Enem, os aprovados seriam
praticamente os mesmos.
"Cursinho é para adestrar, para aprender onde pôr as
cruzinhas!" Verdade, se o vestibular for de decoreba.
Se for um vestibular inteligente, o que hoje predomina nas boas universidades,
o cursinho terá de educar de verdade, pois sem aprender não se passará na
prova. "Não se podem testar conhecimentos marcando cruzinhas."
Sabe-se com total segurança que isso não é verdade. Provas de múltipla escolha
bem-feitas exigem raciocínios complexos e sofisticados para decidir onde pôr a
cruzinha. E, na sorte, o aluno só compete com outros igualmente ignorantes.
(Contudo, é péssima idéia usar provas de múltipla escolha durante o curso.) "A
prova deste ano foi muito difícil!" Verdade ou mentira? É irrelevante. A
prova é a mesma para todos. A dificuldade está no que sabem os outros
candidatos. Se sabem muito, é mais difícil passar. É
como em um jogo de futebol, a dificuldade não está nas regras, mas na
competência do adversário.
"Se se trocar o vestibular pelo Enem, serão aprovados analfabetos!" Qualquer que seja
a prova, se há mais vagas do que candidatos no curso escolhido – mesmo nas
melhores universidades –, o sistema classificatório aprova qualquer analfabeto
(e eliminar tal sistema seria mexer em vespeiro). "Os vestibulares das
universidades públicas criam distorções no ensino médio." Dentre todas,
essa é a única afirmativa verdadeira. O vestibular das universidades públicas
funciona bem, mas virou o real currículo para as escolas da cidade – o que está
errado. Pior, em vez de focalizar o raciocínio e os pontos importantes da
educação, como faz o Enem, leva à dispersão de
esforços, fazendo com que os alunos se percam em listas enciclopédicas de
conhecimentos e detalhes. Isso é menos grave nas melhores escolas, em que os
alunos já têm base mais sólida. Mas é uma distorção grotesca no caso de alunos
que nem sequer pretendem entrar no superior. Recebem uma carga de conteúdos
muito maior do que dão conta de aprender. E, bem sabemos, quando se ensina
demais, aprende-se de menos.
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